
A marcha: John Lewis e Martin Luther King em uma história de luta pela liberdade (Nemo, 2018 para o primeiro volume e 2019 o segundo) é uma trilogia em quadrinhos desenhada por Nate Powell, com roteiro de Andrew Aydin e John Lewis – e tradução do Érico Assis. Os dois primeiros ajudaram a dar forma a essa narrativa sobre a vida do terceiro, em que ele nos conta, em primeira pessoa, um dos eventos mais conhecidos da história dos movimentos negros dos Estados Unidos, a marcha sobre Washington – marcha por empregos e liberdade –, em 28 de agosto de 1963.
Conhecemos a tal marcha principalmente por conta do discurso de um de seus mais conhecidos líderes, Dr. Martin Luther King Jr. e seu sonho. O livro vai sendo entrecortado pelo presente de Lewis e o discurso de posse do presidente Barack Obama. Não deixa de ser emocionante observar o quanto que aquelas lutas de meio século antes construíram o caminho para o país eleger seu primeiro presidente negro.

O livro, vencedor do Book Award, tem um grande ganho pelo traço realista de Nate Powell, autor do também premiado Swallow me whole (ainda não publicado no Brasil). O traço bem definido nos mostram os diferentes rostos que moldaram os movimentos negros: a narrativa nos conta das diferentes perspectivas das pessoas que os forjaram. Desde a ação ativa de pessoas como Malcom X à resistência pacífica de grupos como o do próprio Lewis, inspirados na satyagraha, a desobediência civil não violenta de Mahatma Gandhi.

Lewis nos conta as rotinas de preparação para a marcha e nos fatos que a antecederam: mesmo com legislações permitindo acesso de pessoas negras a espaços anteriormente reservados a brancos, qualquer tentativa de acessá-los podia se transformar em verdadeiras tragédias. As drugstores, por exemplos, aquelas mercearias que também serviam almoço nos balcões, poderiam até ter negros entre seus clientes consumidores, mas a eles não era permitido sentar-se no balcão. Algo tão absurdo, que seria até inimaginável se não tivéssemos exemplos tão recentes e tão próximos de nós de pessoas negras retiradas ou proibidas de entrar em lojas – para não falar de assédios, violências e mortes, muito mais frequentes do que temos noção.

Lewis e outros jovens, se reuniram para discutir e agir. Assim, passaram muito tempo treinando para os famosos “sit-ins”. Entravam nos lugares e sentavam-se. Sem violência, sorriam cordialmente para os funcionários do lugar, que lhes negavam serviço. E esperavam. As agressões se sucediam e eles aguentavam. Corriam risco de vida por se sentarem ao balcão, por tentarem ser clientes, como qualquer outro ali.

Viajamos com esses grupos de estudantes que iam de um canto a outro para se reunirem, e lutarem juntos. O simples ato de entrar em um lugar e pagar para ser servido exigia deles meses de preparação e muito sangue frio. Uma entrega para a luta.
Em seu discurso no fatídico 28 de agosto de 1963, o jovem Lewis fala em nome desses jovem que entregavam literalmente a cara e o corpo todo a tapas. E fez o discurso menos comedido entre os líderes presentes, preocupados em não assustar as lideranças brancas (presidente Kennedy e em torno) que começavam a apoiar as mudanças na legislação excludente.

John Lewis morreu em julho de 2020, de complicações de câncer. Ele ainda exercia o ofício de deputado – reeleito sucessivamente por 16 pleitos, desde 1987. Ele pôde acompanhar o desenvolvimento desse livro, cujo terceiro volume saiu em 2016 nos Estados Unidos (e estava programado para sair aqui neste ano escabroso). O caríssimo Ramon Vitral entrevistou-o para o jornal O Globo em abril de 2018.
(Ainda hoje, no Brasil, negros são a população mais vulnerável à violência. E são quase metade da população brasileira. Como os americanos, os brasileiros também conhece um movimento negro múltiplo (ver aqui um breve histórico). O apagamento dessa história a gente conhece: desconhecemos a história recente dessas lutas, não conhecemos suas lideranças. Aos poucos isso vai mudando: quadrinhos como Angola Janga contam a história dessas rebeliões que aos poucos trouxeram alguns direitos para o povo negro. Mas ainda falta um tanto, muito mesmo, para a gente aprender a ser mais antirracista…)
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