[Com vocês] Gabriel Cavalcanti: A mutilação do pretérito em preto e branco

Gabriel Cavalcanti escreve sobre Em perfeito estado (Veneta, 2024), de Juscelino Neco, explorando as tensões entre a memória e o objeto, entre a inocência e languidez. ATENÇÃO: o texto a seguir contém imagens de nudez explícita.

Seriam memórias pontos fixos no tempo, restos daquilo que aconteceu? Não. O quão fixa é uma memória, a imagem de algo que passou, é discutível e varia de pessoa para pessoa. Lembramos, é um fato. Mas não lembramos do mesmo jeito. E aquilo que lembramos, inesperadamente, assume contornos diferentes quando inserido em uma nova perspectiva. Um comportamento dito “normal” trinta anos atrás é revisitado como um gesto abusivo. E por aí vai. Reminiscências daquilo que foi são, até certo ponto, corruptíveis. Sua mãe jurou que sua primeira bicicleta era vermelha e, por muito tempo, você acreditou, mas ela sempre foi azul. Eu lembro de algo, assim como você lembra de algo. Nossas lembranças se intercalam, nossos passados possuem pontos de conexão. Mas há divergências. Você lembra que o atentado de onze de setembro de 2001 interrompeu a transformação em Super Sayajin 3 de Goku naquele famigerado episódio de Dragon Ball Z. Seu amigo não lembra da mesma coisa, da mesma maneira. Ele assistiu todo o episódio, sem interrupções. Goku se transformou, enfrentou Majin Boo e broxou logo em seguida. Depois, o atentado matou quase três mil pessoas. Eu não lembro de nada, nem tinha idade para lembrar de coisa alguma.

Claro que há registros que podem desmentir uma memória, mas, no geral, o passado é construído a partir de especulação. É um relato em uma roda de amigos, uma lembrança nostálgica dita no almoço de família, uma tentativa acalorada de dizer com a mais absoluta certeza qual era a roupa que você estava usando no casamento de sua tia. E onde está essa roupa agora. Cada um desses casos carregam um filtro de impressão, uma perspectiva, uma experiência. Nunca é a coisa em si: é como você se recorda dela, é como você pensou tê-la vivenciado. Lembranças são fragmentos de vida, não são fatos. Assim, não importa se o onze de setembro interrompeu a transformação de Goku em Dragon Ball Z. Nunca importou.

Falo de memórias porque Em perfeito estado (Veneta, 2024) fala de memórias, de modo muito mais inventivo. Lançado neste ano de 2024, é o quarto quadrinho de fôlego de Juscelino Neco, publicado pela Veneta. Ele narra a história de um antiquarista que vende reminiscências, fragmentos de um passado posto de lado, mas perseguido por certos sujeitos. O protagonista herdou a loja do pai, um acumulador de passados. Vende, compra e revende de tudo, desde candelabros do século XIX até pôster pornô de 1985.

“(…) Estamos mergulhados no presente, mas sua natureza é inapreensível. Cada vez que a consciência se detém em capturar a efemeridade de um momento, um outro presente já se impôs. O passado, por outro lado, é a própria matéria que constitui a vida.”

Dessa matéria, ele faz o seu ganha-pão. Dessa matéria, nós consumimos a história que só existe enquanto passado. Essa é uma característica particularmente curiosa do livro: ele é o relato de um causo, um pretérito imperfeito. Ler um quadrinho, no geral, é uma experiência de momento, um agora em texto e imagem, uma narrativa que se desenrola em tempo presente. Em perfeito estado é um agora-passado, uma narrativa que está acontecendo, ao mesmo tempo em que é um relato sendo lembrado.

Enquanto linguagem, as invencionices de Neco transmutam um livro ilustrado em quadrinho. Com uma exceção ou outra, cada página consiste em uma imagem com um texto.  Haverá quem diga que, indubitavelmente, Em perfeito estado é um quadrinho e haverá quem diga que, indubitavelmente, Em perfeito estado é um livro ilustrado para adultos. De toda forma, indubitavelmente essa discussão pouco importa e apenas revela que há aproximações entre a linguagem de um livro ilustrado e as das HQs — o que não é nenhuma novidade. Sendo assim, como livro ilustrado, o quadrinho interessa por seu poder iconoclasta, de invadir um formato majoritariamente infantil (bem mais do que os quadrinhos) e profanar com a mais explicita pornografia. Isso revela um aspecto significativo da narrativa: é um sacrilégio de um ideal de pureza distante e irreal. O passado é esse ideal, o passado é puro e romântico. As pessoas o buscam como quem busca uma fantasia, um escape, um lugar melhor, composto por nostalgia. Mas, dentro de uma perspectiva diferente, essa nostalgia é condicionada por uma lógica de mercado que capitaliza ideais de infância, materializados em um boneco do Jiraya, um álbum de figurinhas da copa de 94, um gameboy. As fantasias de simplicidade dos objetos do século XIX dão lugar a objetos culturais do final do século XX e início dos anos 2000. O fetichismo com o passado se mantém, independente de qual seja a tendência do momento.

As imagens listam essas peças enquanto a história se desenrola. Juscelino Neco nos torna não apenas cúmplices dessa lógica de consumo, mas membros ativos e participantes. Ler é devorar o passado a cada passar de página, cada prataria, boneco, estatueta, toca-fitas, vinil, máquina de escrever. Consumimos e passamos para a seguinte, da mesma forma que os frequentadores do antiquário. Além disso, os objetos são generalizados através do traço fino, sem muito detalhamento, com pouco, às vezes nenhum cenário e sem sombras. Os espaços em branco convidam o leitor a projetar a si mesmo naquele vazio, a pensar “eu também já tive esse disco do George Harrison”. Mas, dentro do quadrinho, a inocência da lembrança é pervertida, porque, ao ser inserido naquelas páginas, ela é agregada a uma voz indiferente e impessoal. O passado é visto como produto a ser vendido, não é memória, nem vida. É potencial comercial. Indiferente, frio. Dessa forma, o livro busca dessacralizar, também, o passado do próprio leitor.

Nesse ponto, o narrador lembra o protagonista de O Cheiro do Ralo, romance de Lourenço Mutarelli. Ambos são acumuladores e consumidores de vida alheia, sujeitos solitários, resumidos a um trabalho que exige insensibilidade. Dessa insensibilidade, emerge um processo de desumanização do passado e bestificação do homem. O indivíduo resumido aos seus impulsos mais primários: o desejo pela nostalgia como um arremedo da segurança e simplicidade de outrora; a fome insaciável por reminiscências que um dia se tornarão lixo; a busca por um prazer inigualável que vale qualquer mutilação. “Afinal, não é o menino pai do homem?”. Não são esses impulsos maiores e mais significativos do que qualquer moral, ética, decência e racionalidade? Não é essa a lógica vigente de nossa civilização?

Um indivíduo sem singularidade, como o narrador do quadrinho, sem moral, sem ética, não pode ser corrompido, pois nele não há nada a corromper. Ele é uma criatura de momento, definido pela situação na qual está posto. Nunca almejou nada, nunca buscou nada mais do que a satisfação momentânea no valoroso agora. Nele, não há virtude a ser desvirtuada, não há essência a ser deturpada. É um indivíduo sem nome, sem rosto, sem nenhuma característica que o defina para além da profissão. É um indivíduo resumido àquilo que faz, motivado somente por dinheiro ou por algo tão primário quanto. Um narrador vazio, desconectado da própria vida que narra. Uma figura passiva, que segue inconsequentemente o caminho de destruição que lhe é mostrado, como um animal que roe a própria perna por causa da dor.

Falemos de pornografia agora.

“Também disponho de um amplo acervo de material erótico. Desgosto particularmente desse segmento. Atrai mais esquisitos que o normal. Mas são ossos do ofício.”

As narrativas eróticas e as narrativas de terror sempre tiveram um aspecto em comum. Se as histórias de terror são um lugar seguro onde sentir emoções no geral desagradáveis, como medo, angústia e aflição, as histórias eróticas são um lugar seguro onde viver fantasias que, no geral, as pessoas não viveriam no mundo real. A pornografia, pensada como entretenimento, se vende como simplicidade. Todos os questionamentos e as inseguranças que alguém pode ter relacionados ao sexo e ao próprio corpo não existem no universo do pornô. Há apenas a imagem. Há apenas o ato. O sexo pelo sexo, sem complicações.

Quando o erótico encontra o terror essas duas naturezas díspares são amalgamadas, a segurança é posta de lado, e o erótico ganha contornos inquietantes. Ao ver uma pessoa de rosto mutilado em uma situação sexual, você sentiria tesão? Você sentiria tesão pela situação em que está a pessoa ou pela mutilação de seu rosto? Uma coisa exclui a outra? É errado se sentir atraído por uma pessoa mutilada? O erótico, nessa situação, não é mais um lugar agradável, pois rompe com a aparente segurança e simplicidade da mera pornografia.

No caso do quadrinho, a narrativa é como descer uma escada, onde cada página é um degrau e cada frase solitária em uma página ou em branco ou em preto é um andar. A escada apenas desce, a história busca somente o pior. As imagens estão inseridas nessa descida, em diálogo com o restante do quadrinho. Quando há a primeira virada de tom e os inocentes objetos da infância dão lugar à imagem de uma mulher nua de pernas abertas, há uma equivalência de valores sendo estabelecida. Ela também é um objeto comercializado e vendido, ao mesmo tempo em que também é uma memória. O quadrinho olha para a ideia de infância e retira a cortina: a infância não é formada só pela pureza e ingenuidade dos bonecos com que brincamos, ela possui uma narrativa oculta, da qual não falamos a respeito. Em paralelo a isso, o processo de equivalência força com que a nostalgia e a inocência das imagens anteriores passe para as seguintes. É possível haver nostalgia e inocência na pornografia? Claro. Ou pelo menos até certo ponto. Em perfeito estado busca justamente esse ponto de tensão, quando a inocência cede, quando a nostalgia se torna doentia. As imagens, então, passam a ser cada vez mais inquietantes. No início de modo sútil, um corpo leitoso, sem detalhes, um olhar branco, sem vida, fixo no leitor. Lágrimas em contraste aos sorrisos. Logo surge a deformação: elementos animalescos e monstruosos postos em uma página e outra. O quadro tenciona, buscando uma ruptura consigo mesmo. As imagens se empilham, como uma colagem de fragmentos sobrepostos. Novas imagens surgem desse processo, assim como um novo tom e uma nova experiência de leitura. O verniz presente nas primeiras páginas do quadrinho é rompido, o passado se torna frágil e corruptível. E é justamente isso que ocorre na história: Uma invasão ao passado, profanação e degeneração.

“As primeiras lembranças do despertar da sexualidade são particularmente poderosas. Era isso que nosso amigo buscava. Nós escavamos as raízes do desejo e procuramos elementos materiais para canalizar esses impulsos.”

A memória, como disse acima, não é fixa no tempo. Ela perdura. Sua ressonância e continuidade formam e constituem a essência do presente, mas a perspectiva que temos agora do que aconteceu é o filtro através do qual vemos o passado. Dessa forma, ambos estão em diálogo, e o passado está presentemente agora, sendo construído, revisitado, entendido e re-entendido. O presente, por sua vez, é algo efêmero, que acaba antes de seu primeiro tomar de consciência.

Nessa interrelação, Em perfeito estado constrói uma porta entre esses dois lugares e a quebra através de sua linguagem. A narrativa é um lugar de especulação no imaginário humano, um eterno lembrar de propósitos sombrios, e o leitor é uma testemunha introspectiva desse estado de vigília. Mas seu papel não para aí. Como é dito no quadrinho, o único lugar onde essas coisas realmente podem acontecer é a mente humana. E o único lugar onde elas de fato estão acontecendo é a mente do leitor. O leitor constrói o horror e o segue na descida gradualmente atroz da narrativa motivado pelo mesmo senso de curiosidade letal do narrador.

Nós destruímos a película de pureza enquanto compactuamos com o vilipêndio da memória. Consumimos texto e imagem ressignificando-os em uma inquietação desagradavelmente próxima do prazer. E essa é a grande magia de Em perfeito estado, é o significado oculto nos olhares pálidos e sem vida. Eles nos dizem: você gosta disso, você gosta da violência e do sexo, e quanto mais piorar, quanto mais for violento, quanto mais for pornográfico, mais você vai gostar. E então o verniz das primeiras páginas, das primeiras lembranças, se revela como um manto de civilidade frágil e desonesto. Terminar o quadrinho é atravessar o vale imoral da natureza humana, onde tudo que existe é corrupção e indecência. E as últimas páginas, as páginas em branco, vazias, no final da edição, são um espelho para a contemplação de nossa própria natureza corrupta e indecente. No fim, o que você vê quando olha para elas?

“Agora estou tentando me lembrar de um VHS que encontrei no fundo de uma gaveta no quarto dos meus pais. Tinha asiáticas e sexo anal. Qual era mesmo o nome?”

Publicado por lielsonzeni

algo entre working in progress e conclui na próxima edição.

Um comentário em “[Com vocês] Gabriel Cavalcanti: A mutilação do pretérito em preto e branco

  1. o que dizer enquanto ávido fetichista sobre um quadrinho que eu conheço minimamente através de uma leitura feita num blog? Bom… que a leitura é absolutamente correta. Quando se entra em contato com tudo aquilo que é fetiche, o véu das coisas pode ficar extremamente fino, onde se pode imaginar as coisas mais baixas e sujas sendo feitas de uma maneira segura(dado contexto e conversa, claro, e sobre quais coisas podem ser feiras de forma segura dentro do fetiche.. HA! procurem se conhecer e pesquisar) e que seja extremamente delicioso. A leitura do quadrinho há de ser feita dentro de uma semana ou 10 anos, mas pelo que conheço do Juscelino Neco, a leitura vai ser boa.

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