Arrecém (Ugra Press, 2017), de Diego Gerlach, traz pro centro do palco moradores de rua que são flanelinhas. Ou melhor, leva o palco pro meio da rua.
Moradores de rua fazem parte do cenário urbano e constatar isso com indiferença ilustra o tipo de sociedade que construímos. Pessoas que dormem no chão sujo, comem do lixo e que só são brevemente percebidas, com repulsa, quando pedem trocados. Preferimos não pensar sobre isso.
Tomar a condição de vida dessas pessoas como tema implica uma série de riscos. O trabalho poderá ser rotulado como sentimental, panfletário, leviano, esquerdista, higienista, moralista. De qualquer modo, será perturbador simplesmente por nos lembrar que aceitamos tranquilamente o inferno em vida que testemunhamos todos os dias.
Esse é o tipo de desconforto me toma ao olhar para a capa de Arrecém. É como uma carta de tarô, cheia de figuras que permitem diversas leituras a quem se der o trabalho de lê-la. Toda a imundície do primeiro plano, a rua e as cantarolantes pessoas bem-vestidas ao fundo, a figura central de identidade perdida no cabelo e barba de muitos e muitos dias, o absurdo da panela inútil ao lado do fogo.
Há um cuidado com os detalhes da história, com o traço dos desenhos e o uso de tipografia, que me fez lembrar dos velhos adesivos de caminhão: uma “tosquice” planejada que simula uma inabilidade que o autor Gerlach evidentemente não possui. Pelo contrário, o modo como os eventos se sucedem na trama mostram domínio de todas aquelas ferramentas dos manuais de roteiro para prender a atenção do leitor.
Gerlach conhece bem as regras e sabe extrapolá-las. O resultado é um saboroso e bem elaborado conto sobre a refinada arte de escolher, produzir e habitar o seu próprio inferno.
Arrecém é o título número 12 da coleção Ugritos, um projeto que está conseguindo registrar a diversidade e potencialidade desses quadrinhos brazucas do século XXI.
Que época para se viver…
Um comentário em “[Vem Comigo] Arrecém”