[Bartheman] Minhas orelhas – Cinema Panopticum de Thomas Ott

Como explicado no post anterior, vou aqui resgatando uns prefácios, posfácios e orelhas que escrevi, enquanto não volto a escrever de fato. Esse foi um texto que ouvi muita gente citando depois. Fiquei feliz em poder dar um contexto sobre a obra do Ott.

Carrossel de ilusõesCinema Panopticum, de Thomas Ott – Darkside, 2021

Há uma circularidade em Cinema Panopticum que aparece em muitos outros trabalhos de Thomas Ott: uma dança da vida, em que a morte pontua o passo, tirando da dança um personagem e convidando um novo para a roda. E tudo é ritmado pelo seu desenho sombrio, em uma quase total ausência de escrita: em histórias tomadas pelo horror, somos convidados a observar em silêncio, em segredo, como voyeurs mórbidos, deliciados pela dor alheia. 

Seus desenhos parecem gravuras, em que o as ranhuras pretas contribuem para esse ambiente lúgubre de suas histórias. Ele usa a técnica do scratchboard (ou carte à gratter): primeiro ele faz o desenho em uma folha, o copia sobre o papel de riscar, e enfim talha o papel escuro com um estilete, criando esse efeito rasgado, das pequenas linhas sobre a superfície. Lembra bastante o efeito da gravura, como nas narrativas visuais de Frans Masereel do início do século XX e os quadrinhos Olivier Deprez no século XXI – ambos belgas –, mas as ranhuras são inspiração direta de Marc Caro, quadrinista francês que publicou na Métal Hurlant e na RAW

Thomas começou seus estudos em artes gráficas aos dezesseis anos, produzindo zines ainda em um modelo tradicional da linha clara – praticamente o inverso de seu estilo hoje: na linha clara, cada personagem é bem definido pela linha preta contínua que contorna personagens e objetos e pelas cores chapadas (não há meio tom nem sombra). Ao optar pelas linhas pretas arranhando o papel, Ott funde forma e fundo, em que branco e preto na imagem parecem estilhaços de um mesmo percurso cortado à lâmina sobre o papel. 

Em Cinema Panopticum, uma menininha sedenta por diversões acaba gastando seu parco dinheirinho em cabines de cinetoscópio, o aparelhinho criado por William Kennedy Laurie Dickson nos estúdios de Thomas Edson que é considerado um primeiro aparelho projetor de cinema. Nele, filmetes de 30 a 60 segundos, na verdade uma sequência de fotografias que se repetiam em looping, até acabarem as moedas do espectador: um verdadeiro carrossel de imagens sequenciadas que criam o efeito ilusório de movimento, algo que o cinema moderno aperfeiçoaria. Desde o título, porém, Ott já nos assinala que essas sequências de imagens permitem a seus espectadores observar por completo a sucessão de eventos macabros que seus personagens sofrem: o panóptico, uma arquitetura carcerária imaginada pelo utilitarista Jeremy Bentham, seria um espaço de controle em que os guardiões observam os prisioneiros sem se deixarem ser observados: um controle total, e sádico, de uma sociedade disciplinar. Na história de Ott, nós, leitores, somos os olhos que tudo vemos, e será que nos saciamos com as tribulações alheias? 

E será que vai chegar a nossa vez de entrar nessa dança?

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Encontrei o Thomas Ott uma vez, na Drawing Now Paris. Era 2014, eu tinha uma bolsa-sanduíche do governo brasileiro para minha tese sobre quadrinhos, e naquele mesmo ano vi um quadro do Ott na exposição da revista de design Hey! – bons tempos aqueles. No dia em que encontrei o Ott, eu acompanhava o amigo em comum Patrice Killoffer na feira de desenho e ilustração – os dois autores nascidos em junho de 1966 e que trabalham bastante com a cor preta sobre o papel branco. Eles fazem parte de uma geração de artistas que participaram de certa revolução nos quadrinhos europeus, buscando temas mais densos e estéticas rebuscadas, uma aproximação constante da literatura e das artes plásticas. Não por acaso, a editora fundada por Killoffer, L’Association, publica boa parte das obras de Ott na França, inclusive historinhas mais curtas para a coleção Pattes de Mouche (La bête à cinq doigts e La Douane). Como boa parte de sua geração, o suíço Ott começou publicando zines, até seus livros de quadrinhos saírem pelas Éditions Modernes no final dos anos 1980. O autor recebeu os prêmios Max e Moritz de quadrinhos em alemão pelo conjunto de obra (1996), o Grande Prêmio de Design da Suíça (2017) e Cinema Panopticum recebeu o prêmio Micheluzzi de melhor obra estrangeira do festival de quadrinhos de Nápoles (2006). 

Já lá no Drawing Now, fui toda tiete cumprimentar o criador dessas criaturas, um galã rockabilly, jeans e camisa preta como seus personagens rebeldes dos 1950. Parecia o visual de seus personagens, muito inspirados no imaginário americano da década de 1950, que compõem um ambiente misturando uma suposta “época da inocência” com o mal pairando e punindo quem a ele cede, seja por cobiça ou curiosidade mórbida. Por essa justaposição do pretenso inocente, do vício despretensioso, ele nos chama a atenção para o perverso, que se esconde nos cantos das paredes, como baratas, atiçando o orgulho de quem confunde o bem com benefício próprio. 

 Lembrei a ele de algumas trocas de e-mails, anos antes, sobre a possível ida dele e de sua banda ao Brasil, para um festival de quadrinhos que acabou não acontecendo. De uma incrível docilidade, Ott me presenteou na hora com um CD da Beelzebub. O autor de Cinema Panopticum veste preto e tem chifres na testa nas fotos do disco: ele não nos esconde esse fascínio pelo mal e pelo diabólico, e ele mesmo cria imagens fascinantes que nos convidam a participar desse ciclo vicioso – um carrossel de ilusões de quem vê e quem é visto. 

Maria Clara Carneiro 

(professora da UFSM e tradutora, membro do Balbúrdia e organizadora do Prêmio Grampo)

Publicado por mckamiquase

Maria Clara Ramos Carneiro on ResearchGate https://orcid.org/0000-0003-2332-1109

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