Agora a coisa fica mais séria. Uma introdução um tanto mais como pesquisadora para um livro fino demais da Selo Risco.
Autofagia, org. de Guilherme E Silveira e Vizette Priscila Seidel – Selo Risco Impresso, 2021

Abstrações
A primeira vez que li algo sobre quadrinhos abstratos foi no segundo volume do “Sistema” de Groensteen. O primeiro capítulo de Bande dessinée et narration – système de la bande dessinée 2 (2011) tem justamente o título “a história em quadrinhos à prova de abstração”. Ele cita inclusive uma definição de quadrinhos elaborada pela crítica Ann Miller (que, por sinal, traduziu o livro para o inglês): “arte narrativa e visual, a história em quadrinhos produz sentido por meio de imagens que entretém uma relação sequencial, em situação de coexistência no espaço, com ou sem texto” (grifo meu).
Logo em seguida, o Groensteen vai apontar para o importante livro de Andrei Molotiu sobre o tema, um caminho aberto que Autofagia, acredito, também pretende trilhar: uma antologia de quadrinhos abstratos, com uma reflexão sobre esses quadrinhos abstratos. O Groensteen retoma as definições de Molotiu para falar dos quadrinhos “infranarrativos” (termo apresentado por Jean-Christophe Menu em sua tese), ou seja, quadrinhos com narrativa pouco coerente (já eu chamo de quadrinhos com baixo grau de narratividade), para distingui-los dos quadrinhos com ausência completa de narrativa. E esses quadrinhos abstratos real oficial, para o teórico, fundariam uma nova categoria de quadrinhos, que aponta para seu dispositivo.
O pressuposto do quadrinho ser uma mídia plenamente narrativa oblitera o fato dela ser predominantemente visual. Há duas ordens sobrepostas, diria o Pierre Sterckx em um pequeno ensaio sobre a plasticidade nos quadrinhos (na artpress de 2005, especial quadrinhos): a ordem narrativa e a ordem plástica. Adotei essa explicação dele, mas eu diria que essa ordem narrativa pode ter um grau bem próximo de 0, e podemos até dizer que é uma ordem do legível: aquilo que podemos “ler” sobre o dispositivo, nem que essa leitura seja puramente acompanhar a sequência de pequenos elementos sobre a página, e imaginar inferências simbólicas para elas. Por exemplo, em “12×9” do Álvaro Sá, sequência que abre o presente livro, é possível depreendermos o jogo lógico que organiza a série ao longo das páginas. Lemos o exercício, mas ele não é uma narrativa, com começo, meio e fim. Digo também “ler” porque nossa tendência é seguir a ordem de leitura ao qual fomos alfabetizados, e tais quadrinhos são pensados seguindo tal disposição. Já a ordem plástica é imprescindível: inclusive quadrinhos com apenas texto, tanto as letras quanto o dispositivo em que ele se insere, remetem a uma forma, visual.
A ideia de abstração nas artes não quer dizer esvaziamento de sentido. O termo, na verdade, era usado desde os anos 1880 para significar uma forma de arte cortada da realidade, mas declina-se de formas e significações bem diferentes ao longo dos anos, dentre as quais suscitar a imaginação, mais do que copiar a natureza. O cubismo, que difunde o desejo de abstração, visava destruir a imagem tradicional do objeto, para recompor do seu jeito. Franz Kupka, Fernand Léger, Jacques Villon, Mondrian, van Doesburg, Larionov, Malevitch, Hans Arp, Sophie Taueber-Arp são alguns dos autores que vão explorar figuras geométricas e estudos de cores. O crítico Wilhelm Woringer, em seu Abstraktion und Eifühlung teria escrito uma das primeiras teorias sobre os abstratos, opondo a empatia (Eifühlung) e a abstração como atitudes artísticas: a primeira visaria uma maior “adesão íntima” com o mundo, e a segunda uma separação. Porém, pouco tempo depois de seu livro, quando Wassily Kandinsky funda o grupo e revista Blaue Reiter, desenha formas praticamente espirituais, criando uma nova conexão com o divino. Paul Klee, por outro lado, tenta criar um novo sistema de signos, também de valor simbólico.
Com o fim da Segunda Guerra, vêm novos abstratos, tanto o gesto em transe da action painting, o lirismo de outros, como se o abstrato tomasse uma picturalidade própria (BAZIN, 1987, pp. 12-14). Abstração significava retirar, isolar, uma “renúncia à representação mimética do mundo”, quando a plasticidade se sobrepõe ao objeto (GOLIOT-LÉTÉ & JOLY, 2006, pp. 9-12).
Com o banimento do abstracionismo (e das vanguardas) pelos governos de Hitler e Stalin, tal procedimento começou a ganhar um posicionamento também político, ligado à liberdade. Os Abstract Expressionists americanos foram influenciados pelos surrealistas franceses que precisaram migrar durante a Guerra. Posicionamento que seria perdido na declinação posterior do abstracionismo, a Pop Art, voltando-se para uma estética “cool”; assim como o Minimalismo, reduziriam o aspecto espiritual e social do abstrato, que deixaria de ser uma forma única escolhida por um artista, mas uma variação, um artista podendo ir do figurativo ao abstrato sem fazer disso uma questão relevante.
Divago esse preâmbulo das abstrações na arte, pois justamente esse retorno à plasticidade aproxima os quadrinhos das artes plásticas. Esse apontar para o dispositivo, por sinal, pode ser entendido como o post-comics, conceito criado pelo artista plástico e professor Sébastien Conard. Ele reuniu em exposição e livro alguns autores contemporâneos que fazem trabalhos de fronteira: Ilan Manouach, Jochen Gerner, Felipe Muhr, Olivier Deprez, Laetitia Gendre. São artistas que investigam a potencialidade do dispositivo, uma espécie de post-rock do quadrinho, em que há uma referência direta ao dispositivo (no pós-rock, uma lembrança dos recursos do rock, que aparece como paisagem sonora da música em si), que está ali, mas completamente transformado, habitando o objeto final como um fantasma. Para mim, tanto os autores post-punk dos quadrinhos (remanescentes da estética do zine e da contracultura), quanto os post-comics, apresentam alta densidade estética. O segundo grupo, porém, não está preocupado com o eixo comunicativo da página.
Talvez seja um pouco por aí o caminho, uma tentativa de entender abstratos e atrações: são obras que recusam o significado facilmente digerido. Sobretudo em um momento em que “narrativas” estão tanto em disputa, recusá-las não quer dizer abandonar a batalha. Mas sim apontar para sutilezas, para o que está debaixo dos signos, e para o embaralhamento de sentidos.
BAZIN, INSTITUT GERMAIN. Dictionnaire des Styles. Paris: Somogy, 1987.
CONARD, Sébastien; et al. Post-comics. Ghent: Het Balanseer and KASK School of Arts, 2020.
GOLIOT-LÉTÉ, Anne, e Martine et alii JOLY. Dictionnaire de l’image. Paris: Vuibert, 2006.
GROENSTEEN. Bande dessinée et narration. Système de la bande dessinée 2. Paris: PUF, 2011
