[Com vocês] Luísa Monteiro: A astrologia de Liv Strömquist – como ler o que se repete?

Em 2023, numa disciplina no início do doutorado, discutimos uma resenha um tanto injusta sobre o segundo livro de Itamar Vieira Junior, Salvar o Fogo, publicado naquele ano (aqui a crítica e aqui a resposta do autor). Uma das acusações imperdoáveis na visão da crítica era o fato de que o autor havia lançado mão de uma estrutura repetitiva em relação a seu primeiro romance e que, por isso, sua segunda obra não tinha muitas surpresas.

Não é incomum que a escolha de repetir uma estrutura seja vista como um demérito, como uma falta de correr riscos ou de criatividade. É inclusive sistemático nos estudos literários um certo desprezo por fórmulas ou por estruturas que se repetem porque, em última análise, elas teriam a intenção de corresponder às expectativas de certo público leitor, travar algum diálogo com ele. Ainda que a maldigam, não há nada de problemático em repetir uma estrutura, e a história literária traz muito da imitatio em seu corpo.

Mas o assunto aqui é quadrinhos, certo? Trago a discussão da literatura, pois acredito que faça sentido à leitura que fiz da HQ A astrologia de Liv Strömquist, quarto quadrinho da autora sueca traduzido para o português, pela Companhia das Letras (Quadrinhos na Cia., 2025, tradução Kristin Lie Garrubo).

Ao contrário da literatura, nos quadrinhos a repetição não é, desde sua gênese, considerada um problema. Seja nas tiras de jornais, nos gibis semanais e mensais, o público, muitas vezes, vê uma grande expectativa justamente na repetição: de certos personagens, de certos arcos, de certos elementos, de certa estrutura. Brincar com a repetição faz parte do jogo de boa parte dos leitores de HQs. Só que Liv não está construindo uma saga de super-heroína, em que aguardamos ansiosamente para acompanhar as peripécias de uma personagem. Não é o enredo que queremos, leitores fiéis, vê-la repetir, mas outras coisas: as letras garrafais coloridas e tão exageradas que parecem gritos, o tom de humor ácido e crítico em relação ao patriarcado e o capitalismo tardio e suas referências ensaísticas que recheiam discussões densas e filosóficas sobre os assuntos que escolhe abordar.

Em A Astrologia, acredito que ela se distancia um pouco de sua forma mais conhecida, utilizada nos livros três anteriores, em que ela abordou temas mais diretamente feministas (o apagamento da vulva, o amor e a beleza). Em todos eles, o tom predominante é o de quadrinho-ensaio, cuja estrutura pode ser pensada como um artigo, com proposições, demonstrações, exemplos, referências. O quarto quadrinho parece ser o mais bem-humorado e menos ensaístico até agora, a ponto de que, a mim, como leitora, gerou um certo estranhamento à primeira vista, como se algo na minha experiência de leitora esperasse um formato mais próximo (aqui a repetição!) daqueles que eu já conhecia. Em vez de iniciar o texto como um ensaio, todo o livro é apresentado em doze capítulos, um para cada signo, em que Strömquist apresenta uma espécie de curso básico sobre os doze signos, junto de um acervo de histórias de celebridades, figuras históricas, artistas, que ilustram as generalizações que ela propõe para cada personagem do zodíaco. Histórias, quase todas, de um humor tão absurdo quanto a realidade pode ser.

Pensando no conjunto das histórias, mesmo que na maior parte do quadrinho ela não esteja criticando diretamente o patriarcado ou o capitalismo tardio, o absurdo das narrativas que ela escolhe para ilustrar cada signo acabam trazendo as críticas. O projeto ainda está ali, em forma de manual de astrologia, e o discurso acaba sendo captado pelo eco de suas críticas e pelo senso de humor de sempre.

A escolha do tema da astrologia é igualmente interessante. Infelizmente, não terei fontes, mas em uma conversa com um grupo de amigas em 2019, uma delas mencionou um estudo que falava sobre a astrologia ser um assunto que mobilizava mais mulheres e membros da comunidade LGBTQIAPN+, o que gera uma rejeição desse assunto pela heteronormatividade. O horóscopo e os boletins astrológicos também são mais fortes em revistas voltadas para o público feminino, então subverter esse gênero, desmontá-lo e remontá-lo, com menos lentes cor-de-rosa e muito bom humor, é uma estratégia que acaba colocando uma lente feminista para um código simbólico que muito diz ao contemporâneo, como ela própria vai explicar na sua HQ a partir de um artigo de Adorno.

Mas, para voltar às repetições, todo o esquema central do livro me gerou estranhamento: afinal, onde estaria a reflexão teórica sobre o tema escolhido? Vai ser, então, apenas um manual de astrologia em quadrinhos e com exemplos muito tragicômicos? É claro que a sueca não deixaria tudo na superfície e, como se brincasse justamente com essa expectativa, deixa para o final a sua forma mais conhecida: o quadrinho-ensaio. Esse jogo mostra um engajamento interessante da autora com o seu público, uma espécie de compromisso com o fenômeno que ela passou a ser. De certo modo, ela sabe (mais ou menos) o que se espera de uma HQ sua, e nem por isso Strömquist vai entregá-la a nós, leitores, logo de cara. Se ela pode brincar com as grandes estruturas que ela critica, por que não brincar com os leitores um pouquinho?

 Além da brincadeira com as estruturas, há uma mudança considerável em relação ao uso das cores, sobretudo em relação às suas duas primeiras HQs (A origem do mundo e A rosa mais vermelha desabrocha). Diferente das primeiras, Liv gradualmente vem apostando mais em cores vibrantes e preenchidas, bem fortes e opacas, para substituir o branco e preto com alguns poucos momentos cromáticos. Se em Na sala dos espelhos já houve mais espaço para cores, em A astrologia há um show abundante colorido, que é explorado para cada signo e que colore a leitura, que fica bem mais vibrante do que as anteriores. Eu, como grande entusiasta do P&B, estranho um pouco o excesso de informações, mas acredito que para a linguagem da autora sueca e para o tema que ela escolheu, funcionou muito bem a paleta diversa usada em seu panteão zodiacal. Acredito que essa decisão pode também ter a ver com mudanças editoriais, uma vez que as duas primeiras que chegaram ao Brasil, quase majoritariamente em preto e branco, também foram publicadas pela mesma editora sueca, Ordfront Förlag, o que não se mantém nos dois últimos. Independente do motivo, o uso mais marcante das cores é uma novidade nessa HQ.

A repetição de um estilo não precisa ser compreendida como uma falha. Ao contrário, o bom uso dessa estratégia pode ser justamente a consolidação de uma relação frutífera com a linguagem, além do compromisso com um projeto quadrinhístico-político, como é o caso da autora sueca.

Publicado por lielsonzeni

algo entre working in progress e conclui na próxima edição.

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