Eu li Fachadas.
A garrafa de Pitu, com direito ao detalhe do camarão, pode ser a última coisa que o cara bebeu, parte do cardápio alcoólico limitado do boteco decadente; a caixa de fósforo e a postura relaxada do sujeito no sofá provocam a ideia de que, talvez, o incêndio tenha sido proposital; Hotel Ramones, com aqueles quatro camaradas com corte de cabelo característico e camisetas pretas na frente, sim, eu me hospedaria; aquela foto clássica da família reunida na frente de casa, todo mundo já viu uma dessas e tentou identificar o parente na moldura que segura o registro com orgulho; quem sabe o açougueiro venda carne de gato achado na rua; ou o sujeito escorado na lateral da casa está esperando alguém/alguma coisa, ou, quem sabe, aquilo é uma máquina do tempo mesmo; o despejado não tem onde mais guardar o pouco que acumulou; a árvore seca que talvez tenha perdido todas as folhas ou que pode ter crescido mesmo sem ser regada é uma das situações mais simbólicas do livro; a criançada olha com empolgação o mesmo objeto alienígena que causa desconfiança nos adultos; a possibilidade de se transformar naquilo que um trabalho enfadonho e burocrático te transforma; o ambiente reflete o estado de espírito do velho; essa molecada vai sentir a borracha na bunda; pregando pra ninguém e pra todo mundo sempre com um único objetivo em mente; em vez de escolher os canais, parecem escolher um livro, e prestando atenção em quem sabe mais que eles, ainda por cima; se eu soubesse onde fica essa parada espacial, ia junto.
Mesmo sem uma narrativa no formato de tiras, como costumava fazer em seu site e que depois foram publicadas pela Companhia das Letras no genial Ordinário, em 2011, onde a ideia, por mais abstrata que seja, se torna mais evidente, cada ilustração da Fachadas, publicado pela Lote 42, tem um comentário e uma narrativa invisível do Rafael Sica.
Cada imagem abre espaço pro leitor imaginar a história que as fachadas carregam, com uma “dica” na parte de trás ligada à fachada correspondente. Se você fixar o olhar em cada fachada, dar pra cada uma o tempo que merece, e, se posso sugerir, tentar sentir o cheiro do ambiente, perceber o máximo de detalhes no espaço do painel, as janelas quebradas, as gotas de sangue, a sujeira, vai perceber que cada desenho traz um enredo amplo, de uma possibilidade quase infinita do que acontece e aconteceu naquela parte particular de “uma cidade que pode ser qualquer uma”. Esta é uma daquelas obras que conta com a ajuda do leitor e pede dele um pouco mais do que passividade pra que as histórias aconteçam.
Visualmente, o livro é uma série de ilustrações com o estilo inconfundível e corrosivo do Sica, com traços finos, que parecem feitos direto no nanquim, anatomicamente inexato (de propósito, claro), que causam impacto ao olhar e, muitas vezes, uma sensação incômoda, ideal pros vários cenários e narrativas decadentes contidas no livro.
É preciso falar também do formato sanfonado, com a capa impressa em papel Horlle colorido, um material diferenciado.
Sica é daqueles autores que eu compro tudo e de olhos fechados. Nunca me arrependi.
2 comentários em “[Teteia Pura] Fachadas”