“Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. — Leon Tolstoi, in Anna Karenina.
Les Beaux Étés, escrita por Jordi, desenhada por Zidrou, publicada pela tradicional editora Dargaud em 2015. Foi traduzida por Fernando Paz como Verões Felizes e publicada no Brasil no finzinho do indigesto 2016 pela SESI-SP Editora. Um segundo volume já foi publicado lá fora e espero vê-lo logo aqui no Brasil pra acompanhar o desenvolvimento do trabalho de Jordi e Zidrou.
Érico Assis definiu muito bem o álbum em uma palavra: redondo. E se, com sua licença, pudermos considerar por um momento a história em quadrinhos como uma máquina que tem a função de comunicar, de transmitir ideias, Verões Felizes realmente é redondinha. Não subestima o leitor, não superestima o leitor. Coloca informações de maneira clara, usa técnicas precisas para apresentar os personagens, os dramas e as situações. Algumas ideias precisam de leitura atenta e de um desenvolvimento que provavelmente acontecerá nos próximos álbuns da série, mas tudo o que você precisa pra fazer esse gibi funcionar está ali, nos diálogos e desenhos. Redondinho.
A gente pode tomar Verões Felizes como essa “máquina narrativa” e procurar entender como ela funciona, o que é um caminho válido e muito interessante. Eu vou me arriscar aqui e tentar imaginar, afinal, qual é essa função.
Veja que a vida é cheia de contradições, Verões Felizes tem contradições e esse texto que você está lendo também. Por exemplo, apesar de eu começar falando em máquina narrativa e sentir uma sincera atração pelas possibilidades que a analogia oferece para separar elementos e ver como eles se relacionam na produção de sentido, também tenho várias ressalvas com as simplificações e equívocos que tal analogia pode induzir.
Afinal, Verões Felizes não é uma máquina narrativa, mas, em bom português-BR, é um gibi. Uma história em quadrinhos que apresenta personagens e relações que se pretendem verossímeis, complexas e, principalmente, humanas. Não são peças dentro de uma máquina, são pessoas. Ou algo assim.
Agora, caso você ainda NÃO TENHA LIDO esse gibi, eu me sinto na obrigação de te avisar que daqui pra diante esse texto apresenta terríveis SPOILERS que podem te deixar boladinho ou boladinha. Tá bom?
Verões Felizes é uma história sobre família, sem dúvida. A família Pif sai de férias, cheia de alegria, sorrindo e cantando, mas daí vamos descobrindo que tem algo de podre nessa propaganda da Friboi. Primeiro, as crianças nem suspeitam, mas mamãe Madô está pensando em se divorciar de papai Pierre e essa pode ser a última viagem de férias de verão da família. Segundo, a irmã (?) de papai Pierre está morrendo de câncer. E, terceiro, vamos convir, a condição de proletários do casal (apesar de ser muito melhor daquela que o Temer planeja pra você) é claramente a causa da crise no casamento.
Agora veja, eu acho completamente plausível que um casal em crise decida esconder suas desavenças dos filhos e tente oferecer as melhores “últimas férias juntos” possível. Faz sentido, é crível. O que me incomoda é quando olho com atenção e paro pra pensar no desenvolvimento da situação.
É evidente que Madô e Pierre se amam. Esse amor é a coisa mais definida e concreta do álbum. Há várias cenas, que mostram cumplicidade, parceria, uma sintonia fina invejável. No primeiro diálogo que mostra os indícios da crise do casal (página 19), Madô é carinhosa, aquele sorriso e olhinhos rasos d’água, cheia de ternura. Não há fúria em Pierre, apenas tristeza e uma mágoa resignada.
Eu acho essa situação perfeitamente possível, mas não entre a Madô e o Pierre que Zidrou e Jordi nos apresentam. Pense no ato de propor esse divórcio, na dor que Madô sabe que vai causar em Pierre e nas crianças.
O que faria Madô, uma mulher que evidentemente ama o marido e os filhos, propor a separação? Nesta história, a razão é a decepção de Madô com os sonhos e ambições de juventude diante da realidade presente. Não é desencanto com a família ou com Pierre que move Madô a pedir o divórcio, é uma frustração de realização pessoal e econômica (p. 35), não apenas consigo mesma, mas também com o companheiro. Se houvesse outras razões para a opção pelo divórcio de Madô, certamente Zidrou e Jordi as teriam apresentado, pois já deu pra entender que os autores dominam a técnica expressiva dos quadrinhos.
“A verdade é que a gente sonhava com uma vida ensolarada e o que temos é um solzinho de vez em quando”.
Isso é a vida de proletário, Madô. Vive-se para trabalhar, solzinho só de vez em quando e olha lá. Veja o Pierre: desenhando feito um louco, sacrificando três dias das férias da família pra terminar de finalizar as páginas de quadrinhos pro seu editor. Isso é compromisso, responsabilidade com o trabalho E isso é, evidentemente, mais importante do que as férias com a família.
Mas, dentro de Verões Felizes, não se questiona esse tipo de situação. Ela é tomada como natural, óbvia. Vivemos para trabalhar, para nos sacrificar e tomar sol de vez em quando, se nos for permitido. Por que isso? Por que aceitamos isso? Pra quê? Verões felizes responde essas perguntas reduzindo a frustração de Madô a uma dimensão individual, subjetiva, abstrata e completamente esvaziada de qualquer questionamento do sistema que impõe essas condições (p. 45).
Ao final, Madô decide não se divorciar, apenas sair do emprego insuportável na loja de sapatos: “Não sei como vamos fechar as contas, mas dane-se” (p. 59). Quais são as contas para fechar? A alimentação da família, o estudo das crianças, o plano de saúde? Largar o emprego que você não gosta e arriscar fazer seu filho passar fome? Essas perguntinhas chatas nem passam pela cabeça da família de Verões Felizes.
E tem as contradições. Madô é toda carinhosa, dedicada, mas de repente perde a paciência e dá uma bofetada na filha (p. 41). Esse tipo de violência destaca-se justamente pelo clima dominante de “família feliz”. Madô já tinha batido na filha antes? É comum ela perder a paciência desse jeito? Pelo que eu li da personagem no álbum, parece que não. E a reação da filhinha Nicole? Mamãe lhe deu um bofetão por causa de uma bobagem e fica tudo bem? Acontece essa violência pequena e poderosa, mas ela é esquecida como se fosse um incidente isolado e desimportante, sem conexão alguma com relações afetivas maiores e mais complexas.
De novo, olha o Pierre. A primeira conversa de Pierre com o irmão a respeito de Liliane (p. 32) mostra uma forte tensão emocional que desaparece da maioria dos outros momentos da história. Há referências ao ditador Franco e dá pra arriscar que Pierre é um exilado espanhol e que questões políticas são importantes, pelo menos para seu pai que o “deserdaria” se soubesse que voltou para a Espanha de Franco.
Mas, em vários outros momentos, vemos Pierre, paizão, sorrindo bonachão e exalando felicidade ao lado da mulher que ama e que pretende deixá-lo ao fim das férias enquanto sua querida Liliane morre de câncer lá longe (p. 28). Como ele consegue parecer tão de boas? Como todas essas inquietações não transparecem o tempo todo? Não posso falar por você, mas as experiências que eu tive em ter pessoas que amo à beira da morte ou com expectativas de separação prejudicavam um bocado meu bom humor do dia a dia. Daí meu estranhamento com a serenidade alegre de Pierre.
Evidentemente, conduzir os personagens dessa maneira, fazer um Pierre todo de boas, deitado na grama ao lado de Madô, como se tudo estivesse maravilhosamente bem, não constitui um “erro” ou uma “inabilidade”. Há uma intenção aqui. Verões Felizes, afinal, não é uma história sobre pessoas frustradas por causa de uma vida que não corresponde à promessa dos comerciais das famílias sorridentes.
Verões Felizes é exatamente um desses comerciais.
A função desse gibi não é questionar relações sociais de trabalho ou refletir sobre questões de perda e separação ou contar uma história de divórcio na qual uma pessoa simplesmente se desencanta com sua companheira, decide tentar uma pequena revolução e precisa lidar com as complexas consequências.
A função de Verões Felizes é criar um clima de nostalgia com toques de drama, valorizar a família e brincar com as emoções, sem parar pra pensar muito nelas. Não é pra pensar, é pra sentir.
É uma propaganda adorável e muito bonita que nos diz que, diante das frustrações da vida, das perdas e tristezas, pesar e dor, o melhor é “não ficar se lamentando” (p. 58). Você sabe, não pense em crise, trabalhe. Não questione o jogo. Não pense sobre as regras. Aceite as coisas como são. Aceite o papel que lhe foi dado. Acredite que foi você que escolheu isso. Obedeça.
Entendo que Verões Felizes vai agradar e fazer muito sentido pra quem tem família e zela por ela, trabalha pra burro e valoriza cada minuto das férias. Começando com o casal idoso (p. 8), de mãozinhas dadas – que nos diz que a “subida no pinheiro”, apesar de difícil e dolorosa, vale a pena – e seguindo pelo clima de nostalgia e lembranças de infância, o que se faz é: reforçar o mito de que trabalho e família são pilares sagrados, compulsoriamente desejáveis, sem os quais não há existência imaginável e que justificam ou minimizam qualquer sacrifício, crise ou sofrimento. Reforçar esse mito é a função que Verões Felizes cumpre com louvor.
Pra encerrar, vale destacar a cena (p. 25) onde a família Pif encontra outra família, holandesa, ocupando o “seu” cantinho. Com uma estratégia muito engraçada, Pierre convence os “invasores” a partir com o alerta sobre as terríveis mutucas. Não se considera partilhar ou deixar o “cantinho” pra quem chegou primeiro. Toma-se o cantinho, expulsa-se o invasor, ainda que com uma mentira inofensiva. O “mais esperto” prevalece, mostrando que os europeus, povo culto e evoluído, conhecem e praticam a “lei de Gerson” tão bem quanto nós, brasileiros. Na ginga, no sorriso e na inocência.
As coisas são assim.
Mas não precisam ser.
Pense nisso.
(Muito obrigado ao Lielson por me dar de presente a citação do Tolstoi que abre esse post. Valeu, brô!)
Um comentário em “[Cuba Liber] Família, Êh! Família, Ah!”