[Vem comigo] Nori e eu

Nori e eu é um quadrinho autobiográfico feito a quatro mãos: mãe e filho, Sonia Ninomiya e Masanori Ninomiya, e conta ainda com a direção de arte de Caeto (WMF Martins Fontes, 2019)*.

Sonia Ninomiya é professora aposentada da UFRJ, de língua, literatura e cultura japonesas. Masanori é seu primeiro filho, nascido em 1985. Ele desenha a história dos dois.

Acompanhamos a gravidez desejada da mãe, a depressão pós-parto pela qual ela passa, e a culpa que ela sente, depois, só por cogitar um problema em seu filho: Nori é uma pessoa do espectro autista, e se ainda hoje o transtorno continua coberto de estigmas, naquela época ainda era bem mais complicado.

O autismo engloba desordens sem origem ainda muito bem definidas, sobre o qual a cada dia se descobre novas formas para convívio. Diz-se espectro, justamente, por não ser um transtorno único, mas desde dificuldades sérias de interação social a hipersensibilidade ou hipossensibilidade sensorial – portanto, transtorno do espectro autista (TEA). Pessoas autistas são diferentes de pessoas neurotípicas por dependerem de rotinas de cuidados para melhorarem habilidades comunicativas, sociais, de adaptação, de organização. Não é uma doença, portanto não tem uma “cura”: é possível permitir melhores condições de vida para pessoas com TEA seus familiares, como tratar ansiedade, depressão, comportamentos repetitivos. (Saiba mais aqui).

O pai de seu filho sendo de origem japonesa e ela brasileira, Sonia sofria pressão das duas famílias por essa “mistura”, por ser uma mulher mais “velha” para ter filhos (36 anos), e não adiantava ser uma mulher em um casamento feliz e bem-sucedida na carreira. Com a demora do seu filho em aprender a falar, recaiu ainda mais sobre si a ideia de uma “culpa”, que lhe assombrou ainda, por muito tempo, com pesadelos frequentes.

A dor de Sonia ao descobrir um problema em sua prole, ainda precisava ser silenciada. À mulher ainda cabe toda a responsabilidade de criação dos filhos e suas consequências. Na geração de filhos, a mulher parece ser ainda a única responsável, culpada. Um trabalho de cuidar solitário, em diversos sentidos (e um trabalho compulsório, sem nenhuma garantia de que o desejo da mulher será respeitado).

(Nunca vou esquecer o dia quando uma tia me confidenciou o diagnóstico de meu primo. A dor imensa que ela sentia em ter “falhado” como mãe, e o medo da reação da família que já não era das melhores pela criança não se desenvolver do mesmo jeito que as outras crianças da mesma idade.)

E descobrir autismo nos anos 1980 era bem difícil, e até um tabu. Um dos médicos chega a perguntar a Sonia se a gravidez tinha sido desejada. Parece absurdo, mas ouvi de psicólogos em 2014 em um evento acadêmico que não desejar a criança era uma explicação válida para morte súbita infantil. Imaginem a camada extra de culpa sobre mãe ao ser perguntada se de fato desejava a criança?

Como Sonia mesmo nos conta, vencer os tabus em torno do autismo também foi uma forma importante para aprender a conviver com o filho e consigo mesma. Com a ajuda de outras pessoas, sobretudo associações e novas pesquisas, cada vez mais se vive o autismo com menos estigmas. E esse livro é um exemplo importante, sem a pieguice natural que envolve supostas “histórias de superação”, que escondem, muitas vezes, um capacitismo implícito na ideia do transtorno ou da deficiência como algo a ser “superado”.

Nori desenha sua própria história narrada por sua mãe. Ao final do livro, ele mesmo se narra, a partir de fatos de que se lembra. É uma lista fragmentária, que nos permite conhecer um pouco sua “percepção de mundo”. Na verdade, o mundo é esse monte de fragmentos que a nossa psiquê tende a juntar e a formar sentidos. E sendo a arte esse importante instrumento para dar sentido ao mundo (o Gregório Duvivier falou um pouco disso neste ensaio em vídeo), Nori também reúne esses fatos aparentemente esparsos e cria uma narrativa sua. E a nos comunica, nesse desenho que nos faz perceber suas principais referências, desenhos japoneses e Turma da Mônica.

É uma história bem bonita, enfim, de autoconhecimento: um belo diálogo entre mãe e filho, travado entre eles e conosco, em uma história em quadrinhos.

*O livro foi gentilmente enviado pela WMF Martins Fontes para o Balbúrdia.

Publicado por mckamiquase

Maria Clara Ramos Carneiro on ResearchGate https://orcid.org/0000-0003-2332-1109

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