
“Referências”, alusões a outras obras, nunca foram uma novidade, mas ultimamente parecem muito importantes para os comentários sobre quadrinhos, filmes e séries.
Por exemplo, as primeiras 12 páginas de Oblivion formam um prólogo que nos apresenta a protagonista num parque, um ambiente que parece muito bacana, pessoas se exercitam sorridentes, borboletas passeiam pelos painéis.
As personagens comem hambúrguer, leem livros de papel e tudo parece muito comum, um pouco idealizado até, quando percebemos robôs flutuantes que passeiam com cachorros e um patinete (skate?) voador (lembra qual filme?). Não são apenas “referências”, são códigos que estabelecem que estamos vendo uma representação de futuro, aparentemente uma utopia.
E então nossa protagonista reconhece uma amiga e se aproxima para por o papo em dia e descobre que essa amiga tinha se submetido a um “tratamento” que apagou suas lembranças.

Sou desses que se envolve com qualquer fiapo de história e me comovi com o mal-estar da protagonista por sua querida amiga ter pago para esquecê-la. E me foi impossível não pensar no filme Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças.
(Aliás, ainda sobre a importância de “referências”, vale ressaltar que no final da edição existe um “glossário” listando frases e elementos da HQ e suas ligações externas).
Nesse prólogo, parecia que a proposta de Oblivion seria brincar com essa ideia de esquecimento transformado em mercadoria para dar mais “conforto” às pessoas. E, pelo que entendi do posfácio, até foi esse o ponto de partida, mas, segundo os autores, acabou se tornando uma história sobre depressão.
Foi interessante ler esse posfácio com as intenções e entendimentos dos autores, porque a minha impressão não foi de ler uma história sobre depressão, mas uma história sobre as ficções que criamos para nós mesmos sobre nossas próprias vidas.
Ana, a protagonista, vive em um futuro utópico. Robozinhos flutuantes são vendidos e não apenas servem como celular, computador e secretário, como também tornam-se amigos dos usuários, seres empáticos, sensíveis e carismáticos, sinceramente interessados na felicidade de seus donos.

Não há miséria visível, não há pandemia, não há presidente genocida no poder. Mas ainda há o emprego, a obrigação de trabalhar diariamente e se submeter a relações de poder e assédio.

Ana é apresentada como uma personagem “boazinha”, que diz sim para todo mundo, muitas vezes sacrificando o próprio bem estar. Essa ideia é repetida em diversas situações ao longo da história e a condição psíquica da personagem vai se deteriorando.
Sem querer dar spoilers, basta dizer que as coisas chegam a um ponto em que Ana decide usar os serviços da tal empresa de “esquecimento”.
Nós damos sentido pra nossas vidas pela ficção. Existem os “fatos”, mas o significado é construído pelo modo como avaliamos esses fatos e os transformamos em experiências “boas” ou “ruins”.
Ana entende que suas memórias e sua história pessoal eram a causa de sua infelicidade e que as remover seria a solução. Abrir mão de si mesma, de tudo o que viveu. Uma interpretação minha, talvez fora da intenção dos autores, foi que essa situação parece uma alegoria do suicídio. Para mim, isso potencializou muito a história.

A arte de Laura Jardim e o roteiro de Fabrício Martins criam uma interface muito amigável para a representação da vida de Ana e seus dramas. O processo de apagamento da memória, assim como em Brilho Eterno de Uma Mente sem Lembranças, aparece como um procedimento estético, uma mutilação vendida como forma de aprimorar o bem-estar.
Mas enquanto o filme de Michel Gondry é um bocado sobre o luto de um relacionamento, Oblivion me deixa essa impressão de mostrar como uma pessoa pode ser tragada pelos desgostos do cotidiano a ponto de tomar uma atitude trágica.
Oblivion é uma publicação independente, com a maioria de suas páginas em preto e branco. Além de Laura e Fabrício, colaboram também com a edição Jane Carmen (arte-final) e Carlos “Caule” Henrique (diagramação e letras). O contato para adquirir o exemplar pode ser feito pelo perfil da HQ no Instagram.