[Vá com o Carmo] Escrevivências Visuais e o Campo ampliado nos quadrinhos de Ana Penyas

Capa da edição brasileira

ESTAMOS TODAS BEM, de Ana Penyas (Palavra, 2022, tradução Ivan Rodrigues Martin) é uma HQ sobre avós, mães, filhas… mulheres. Acima de tudo, uma história sobre memória e sobre espera.

O trabalho da jovem artista espanhola nascida em valência, ao que me parece, passou despercebido pelo público brasileiro. Esse é o seu primeiro quadrinho publicado no Brasil, mas não o seu primeiro livro. Como ilustradora, Penyas tem pelo menos uma dezenas de obras, de natureza diversa, publicados na Espanha em produção solo ou em colaboração com outros autores, como livros ilustrados, fanzines, catálogos etc., além de ilustrações para revistas, jornais e cartazes. Dois dos seus livros ilustrados já saíram por aqui: Mexique: o nome do navio (Pallas Mini, 2020)e Meu bairro (Pallas Mini, 2020), ambas em colaboração com María José Ferrada.

Capa da edição brasileira
Capa da edição brasileira

Nos quadrinhos, seu segundo trabalho de fôlego Todo Bajo el Sol (Salamander Graphic, 2021), continua inédito no Brasil.

Capa da Edição Espanhola

Além de ilustradora e quadrinista, Penyas tem uma interessante produção no campo das Artes Visuais. Sua exposição intitulada EN UNA CASA (2023), aborda o universo popular e majoritariamente feminino, constituindo-se a partir de narrativas orais de mulheres trabalhadoras e na consubstanciação entre história e memória, o que possibilita a construção e reimaginação de concepções étnicas, sociais e de gênero, resultando em uma espécie de “escrevivências visuais”, ampliando aqui o conceito original de escrevivência desenvolvido e empregado pela escritora Conceição Evaristo, acrescido de uma densidade gráfica e formal, que se desdobra, simultaneamente em:

Obra gráfica: composta por 40 desenhos feitos expressamente entre 2012-2022, baseados sobretudo nas histórias das 35 mulheres entrevistadas para esse projeto e vão desde a década de 1920 até o presente.

Desenho produzido para o projeto EN UNA CASA
Desenho produzido para o projeto EN UNA CASA

Exposição: realizada no Instituto Valenciano de Arte Moderna, em colaboração com a antropóloga Alba Herrero Garcés.

Espaço expositivo de EN UNA CASA
Espaço expositivo de EN UNA CASA

Publicação: recolhe a pesquisa e o trabalho realizado em torno do projeto expositivo.

Publicação produzida para o projeto EN UNA CASA

Fanzine: intitulado “Derechos y dignidad”, resultado de um grupo de trabalho criado no âmbito da exposição composto por 14 trabalhadoras domésticas e cuidadoras que participaram da produção coletiva do fanzine.

Capa do Fanzine produzido de forma colaborativa para o projeto EN UNA CASA
Página do Fanzine produzido de forma colaborativa para o projeto EN UNA CASA

O projeto EN UNA CASA, em suma, trata da genealogia do trabalho doméstico e do cuidado, uma espécie de síntese de seus interesses temáticos e poéticos que, de certa forma, perpassam seu universo pictórico como um todo. O diferencial dessa exposição se encontra na maneira de como ela experimenta com a linguagem dos quadrinhos dentro de um espaço expositivo, nos pondo a pensar nas possibilidades dos quadrinhos no chamado “campo ampliado”.

Nas Artes Visuais, o campo ampliado é uma abordagem que enfatiza a liberdade de expressão e a experimentação artística, que desafia as convenções e limites tradicionais. Termo originalmente introduzido pela crítica de arte Rosalind Krauss em seu ensaio “Escultura no Campo Ampliado”, publicado em 1979, representa uma ampliação das possibilidades de expressão da escultura, que não está mais limitada à sua forma tradicional de objeto tridimensional em um espaço físico delimitado. No ensaio original, Krauss defende que a escultura pode agora se expandir para além de suas fronteiras físicas e adotar outras formas de expressão, como a performance, a instalação, a intervenção e a arte conceitual.

O entendimento que temos do chamado campo ampliado hoje, é muito mais abrangente, e contempla uma ampla variedade de técnicas e mídias, permitindo que os artistas explorem novas formas de criar, exibir e interagir com a arte, incluindo nesse seara das artes também as histórias em quadrinhos.

Cabe aqui um breve parênteses sobre a resistência que ainda se encontra em pensar os quadrinhos à luz da arte contemporânea, ou seja, na possibilidade que a linguagem dos quadrinhos tem de extrapolarem seu “campo” específico, experiência que vem acontecendo cada vez mais dentro do que podemos chamar de “história em quadrinhos contemporânea”. Heimat: Ponderações de uma alemã sobre sua terra e história (Quadrinhos na CIA, 2019, tradução de André Czarnobai) de Nora Krug, é um bom exemplo disso.  O trabalho “inclassificável” de Krug, pode ser entendido como uma HQ de campo ampliado que nos traz experimentações formais que fazem fronteira com o “livro de artista”, o livro ilustrado ou mesmo o diário, flertando também com o gênero romanesco bildungsroman (romance de formação).

Páginas da edição alemã de “Heimat”

Para citar um exemplo mais próximo da abordagem de Penyas, lembremos de Incidente em Tunguska (Independente, 2015) de Pedro Franz, desdobramento poético de sua pesquisa de mestrado em Artes Visuais pela UDESC, que inclui a dissertação em si, assim como uma HQ pensada de forma impressa mas que também se desdobra no espaço expositivo, ampliando seu horizontes de interação com o leitor.

Espaço expositivo de “Incidente em Tunguska” de Pedro Franz

Em seu artigo “Comics’ Expanded Field and Other Pet Peeves” publicado orginalmente em 2011, Domingos Isabelinho argumenta que o essencialismo do “mito de criação” dos quadrinhos é arbitrário – como a imanência da impressão e distribuição em massa – baseado em definições igualmente arbitrárias – como as alardeadas “características essenciais”: sequencialidade, relações entre palavras e imagens, balões, a justaposição dos painéis etc. – concluindo que, em suma, qualquer definição formal escolhe arbitrariamente algumas características e esquece outras.

O apego ao essencialismo e definições prévias e arbitrárias de um “campo limitado” dos quadrinhos funciona muito mais como uma forma de negar os próprios quadrinhos do que, de fato, acolhê-los.

Ao negarmos o essencialismo, podemos olhar para trás (na história) e encontrar grandes histórias em quadrinhos, assim como podemos olhar para os lados e perceber o potencial quadrinizante (para usar aqui um termo esquecido do grande Moacy Cirne) presentes nos mais diversos campos das artes como instalação, a performance, arte conceitual etc.

Nada disso nos impede de também olhar para frente e ter um horizonte infinito de possibilidades de experimentação.

Os artistas que trabalham com quadrinhos devem ter a liberdade de experimentar e explorar novas possibilidades, e é justamente essa experimentação formal e as inventivas soluções gráficas que Ana Penyas adotou para constituir seu universo que me ganhou.

Especificamente em ESTAMOS TODAS BEM, As linhas de grafismo despojado dão forma de maneira muito expressiva e particular a um mundo que dispensa a perspectiva linear para explorar um espaço pictórico moderno por meio da sobreposição de planos que evidenciam a planaridade da página.

Página da edição espanhola de ESTAMOS TODAS BEM

Ao  lançar mão da apropriação/intervenção fotográfica, da colagem, da monotipia e da bricolagem, ela “costura” essas diversas técnicas para tecer seu quadrinho. Um pouco como sua avó paterna, Maruja, cuja a artesania e a atenção aos detalhes se evidencia nos pequenos cuidados domésticos, outro tanto como sua avó materna Hermínia, um pouco mais subversiva e autoconsciente.

Penyas concilia a memória e imaginação, por meio da escuta afetiva das histórias de suas avós, o que exige uma relação com tempo muito próximo ao tempo da artesania, que é também um tempo de espera, que convida a refletir sobre o lugar fora do tempo em que essas mulheres foram obrigadas a viver.

Para conhecer um pouco mais do trabalho de Ana Penyas, recomendo a leitura de outros dois quadrinhos ainda inéditos no Brasil: Así Vivimos el 8M (El País, 2018), que registra uma mobilização inédita que ocorreu simultaneamente no mundo no dia 8 de março de 2017 (Dia internacional da Mulher) quando um grupo de feministas colocou em prática uma proposta de greve internacional, planejada no ano anterior, em prol da luta contra a violência patriarcal e capitalista, que ficou conhecida como 8M. A Série de tiras publicadas pelo jornal Espanhol El País pode ser lida aqui. e Asturias dear Homeland (Phantagraphics/ESPANHA artes e cultura, 2022), HQ de 6 páginas realizada em parceira com o ilustrador Seisdedos, parte do projeto “Illustrating Spain in the US”, também está disponível online que pode ser lida aqui.

Publicado por Valter do Carmo Moreira

Professor, pesquisador, autor de histórias em quadrinhos e artista plástico. www.valtermoreira.com.br

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