
“Não, a pintura não é feita para decorar as paredes. É um instrumento de guerra ofensiva e defensiva contra o inimigo”.
Picasso, 24 de março de 1945.
Nas paredes do Museu Picasso em Barcelona, encontramos essas fortes palavras do mestre andaluz que adverte o incauto transeunte do grande equívoco do senso comum: de acreditar que a pintura é apenas uma forma de entretenimento esvaziada de subjetividade e conteúdo político que ultrapassa o seu próprio tempo e espaço. Assim como toda pintura, e por extensão todo gesto artístico, é político. Obviamente isso inclui os quadrinhos.
A seguir, quatro quadrinhos para pensar o nosso tempo e além:
HEIMAT: PONDERAÇÕES DE UMA ALEMÃ SOBRE SUA TERRA E HISTÓRIA de Nora Krug (com tradução de André Czarnobai). Quadrinhos na Cia, 2019.
Um livro de colagens, uma HQ, um álbum de fotografias, um livro de artista…. Heimat investiga o antissemitismo no passado da família de sua autora, ao passo que propõe um reflexão profunda sobre a culpa nacional alemã pelo Holocausto e acena/alerta para a ascensão da extrema direita no mundo, com paralelos tupiniquins inevitáveis. A Alemanha, país que passou por tudo isso, até hoje preserva a todo custo sua amarga memória em inumeráveis museus e documentos que fazem com que o remorso de uma nação inteira esteja sempre latente, e mesmo assim, vê crescer em seu território um terrível partido com claras filiações nazistas. Vemos hoje em um país como nosso, que nega seu passado histórico, o racismo estrutural, a ditadura militar e todo o seu horror, o resultado cabal desse obscurantismo. Precisamos emergencialmente resgatar o nosso “Heimat”, a nossa história, assumir suas vergonhas, desprezar sua reincidência e combater essa mentalidade hedionda e obscura que penetra no tecido social.


A TERRA DOS FILHOS de Gipi (com tradução de Michele Vartuli). Veneta, 2018.
Uma grande experiência em Quadrinhos. Uma imagem desoladora de um mundo terrível e infelizmente possível: sem livros, sem ciência, sem afeto. Mas que traz em si uma grade mensagem: Não podemos deixar os idiotas vencerem, Em tempos que, como esse, é necessário afirmar e defender o óbvio. O traço ágil, caligráfico, hachurado e caótico de Gipi dá à HQ um tom de emergência e aridez. O convulsivo emaranhado de linhas utilizados para representar as sombras e a penumbra contrasta com o espaço negativo das cenas diurnas que traduzem bem o vazio e a desolação de um mundo que se foi.

PRIMAVERA EM TCHERNÓBIL de Emmanuel Lapage (com tradução de Fernando Paz). Geektopia, 2020.
Fui pego de surpresa por essa obra. Pensei que fosse encontrar um retrato lúgubre e melancólico de um desastre nuclear escamoteado em seu tempo pela política e pela imprensa, com uma ponta amarga de similaridade com a nossa situação atual em que temos um governo que nega o desastre sanitário da pandemia, nega as queimadas na Amazônia, nega o racismo, a ciência…
Me deparo com o relato poético e sincero de uma expedição até a “zona” em Tchernóbil, atravessado por uma densa discussão sobre a natureza do desenho enquanto e suas possibilidades de experimentar o mundo, por quem o faz e por quem o vê. “Como desenhar o invisível?” Se pergunta Lapage, evocando a grande máxima de Paul Klee: “O artista dá a ver aquilo que não é visível”. Uma obra que questiona a realidade do visível e a si mesma no processo de sua feitura, evoca o desenho enquanto investigação poética do mundo, do sensível, do visível e do indizível.

E DAÍ? de Guilherme E Silveira. Selo Risco Impresso, 2020.
Se tem uma HQ que, de forma brilhante, deu conta de traduzir em linguagem esse acachapante biênio do Covid 19, foi essa.
Partindo da infame e degenerada frase de nosso atual chefe de estado ao ser questionado por um jornalista a respeito do aumento do número de mortos em decorrência do Covid-19, essa “obra-resposta” se propõe a materializar, mesmo que no campo simbólico, o buraco que cada uma dessas vidas deixou no mundo. Num gesto serial, Guilherme escava essas covas no papel, uma por uma. Essas marcas, se agrupam e se multiplicam ao longo das páginas. Logo se apreende o livro-objeto como um todo.
O silêncio do luto só é quebrado pelo título que compõe as únicas palavras proferidas de toda a HQ. Quando a leitura se encerra, e o objeto é apreendido, o livro que se fecha não é o mesmo que abrimos. Só mesmo a linguagem dos quadrinhos para poder dizer e dar corpo ao inenarrável.
Com E Daí?, Guilherme E Silveira, à maneira de Picasso, “levanta” sua arte contra o abominável. Em 1937, quando Pablo Picasso foi questionado pelos soldados da SS, que apontaram para sua descomunal tela Guernica e perguntaram: “Foi você quem fez isso?”, e Picasso responde de pronto: “Eu não, foram vocês!”, se referindo não à representação do horror captado pela tela, mas o massacre real. É nessa mesma chave que imagino o Guilherme respondendo aos acólitos do sacripanta.


Não, os quadrinhos não são feitos só para decorar as estantes. São um instrumento de guerra ofensiva e defensiva contra o inimigo.