[Com vocês] Gabriel Cavalcanti: Psicologia da adaptação com a fábula de Odyr pelo Capibaribe

Adaptações são sempre complicadas, não é mesmo? O processo de adaptação de uma linguagem para outra é um processo como o de tradução, onde haverá proximidades e distâncias entre o texto a ser adaptado e o resultado. Quando há uma grande diferença, é possível construir uma nova perspectiva à obra que, no texto original, não existe.

Pensemos em Apocalipse Now (1979) — adaptação de Coração das Trevas, de Joseph Conrad (1899) —, a critério de exemplificação. Para além da renovação da metáfora colonialista aplicada em um contexto, à época, contemporâneo e politicamente relevante, temos um filme profundamente insano, místico e inquietante. Características advindas do uso da linguagem cinematográfica a serviço de uma identidade diferente da do livro base. E, por consequência, infiel à sacralidade da obra literária que foi adaptada, mas muito bem-vinda ao filme antiguerra contracultural de Francis Ford Coppola.

Em outras palavras, enquanto a tradução é um segundo texto que se propõe a ser o primeiro para aqueles que não podem ler o original, uma adaptação é outro texto, cujo compromisso com o texto base é fluido — ficando a critério de seu realizador. Na adaptação, a proximidade e a distância com o texto a ser adaptado não implica necessariamente qualidade (na bem da verdade, nem na tradução implica). Além disso, quando falamos de adaptar uma obra de uma linguagem para outra, estamos falando de uma passagem radical de um sistema de significantes para outro. O que será passado, entretanto, não se resume somente à narrativa ou às características dos personagens, é algo mais obtuso. De toda forma, o segundo texto, o resultado do processo de adaptação, será o choque de duas identidades diferentes.

Dito isso, nos encaminhemos para o objeto primário desta crítica: a adaptação em quadrinhos do mais famoso poema de João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina, feita pelo quadrinista gaúcho Odyr. Escrito entre 1954 e 1955, o poema é um auto de natal pernambucano que narra a migração de um retirante, de nome Severino, seguindo o fluxo do Rio Capibaribe em direção ao Recife, em busca de uma vida melhor, emprego e sustento.

No quadrinho, Odyr utiliza o texto de Cabral quase por inteiro, mas diminui a extensão das cenas. O autor escolhe a primazia da imagem sobre o texto no espaço visual de sua página, utilizando por vezes de uma única imagem de página inteira para a ilustração de uma quadra. Essa escolha causa dois efeitos na HQ. O primeiro é o ritmo rápido de leitura, principalmente no início, causando uma imersão do leitor nas cores de Odyr e na sonoridade cabralina. O segundo é a sensação de que se está lendo um livro ilustrado e não uma história em quadrinhos, o que se intensifica com o apagamento dos demais elementos que compõem uma HQ.

De modo mais claro, quando observamos as páginas de Morte e Vida Severina, vemos sempre uma imagem, às vezes solitária, às vezes acompanhada de uma sequência. O balão, quando existe, é de modo tímido, mas normalmente há apenas um rabicho para indicar a fala. As bordas dos quadros, por sua vez, são inexistentes. Claro que um quadrinho comporta essa configuração — esta não é uma crítica a ficha catalográfica —, mas a sensação existe. E um dos motivos pra ela vem das escolhas de imagens que Odyr fez para preencher as páginas e quadros. Por um lado, temos a aproximação do drama do retirante pernambucano com os imigrantes europeus, atribuindo uma universalidade para o auto cabralino e transformando o retirante em um signo metafórico. Por outro, contudo, muitas imagens escolhidas por Odyr são aproximações lógicas do texto, que apenas ilustram o narrado, causando uma redundância — característica ainda mais intensa nos momentos de diálogo.

Pensemos no primeiro caso, exemplificado na apresentação de Severino, nas primeiras páginas da HQ. Primeira página: vemos um homem magro, usando roupas simples, chapéu na mão, sem rosto, sem identidade. Texto: O meu nome é Severino, não tenho outro de pia. Em seguida, o poema de Cabral busca individualizar o falante tornando-o cada vez mais genérico, pois, Severino, de tão comum que é, não pode ser definido nem por nome, nem por mãe, nem por pai. Odyr, então, invoca outros Severinos para dimensionar essa pluralidade e esse apagamento, todos iguais, todos sem rostos, todos marcados pela pobreza. Depois, as identidades mudam e se globalizam, o cenário nos transporta do sertão para o mar e, de novo, para a terra seca, mas de outro ambiente. Severino se torna mulher de burca e jovem com colete salva-vidas. Ele se torna dor e perda, miséria e solidão. Severino é o rosto cansado, a pele escura, a vida inteira carregada nos braços.

Nesse momento, o quadrinho universaliza o regional, como uma antena parabólica enterrada na lama do mangue — para evocar a imagem do movimento Manguebeat que sintetiza a relação —, não apenas transmitindo para o mundo, mas, do mundo, absorvendo.

Pensemos, agora, no segundo caso, exemplificado no diálogo entre Severino e a Mulher na Janela, mais à frente no quadrinho. A sequência dura seis páginas e, a cada duas páginas, há uma splash page. A princípio, esse paralelismo parece algo interessante, pois o poema cabralino é construído através de um paralelismo extremamente rigoroso, principalmente nessa passagem. Contudo, ao olharmos para os quadros, percebemos não haver o mesmo rigor na composição, devido à variação do tamanho de cada um e da quantidade de quadros por página. Talvez essa oscilação tenha sido usada como um modo de trazer dinamismo para a sequência, mas o mesmo dinamismo não é visto nas ilustrações de Odyr, que mostra de modo lógico aquilo relatado no poema. Ou seja, quando o texto traz a fala da Mulher na Janela, a imagem mostra a Mulher na Janela; quando o texto expõe a resposta de Severino, a imagem mostra Severino. A mesma coisa é vista em outras sequências do quadrinho, sendo ainda mais intensa nas passagens de menos narratividade.

De certa forma, a visualidade do quadrinho pode ser interessante para aqueles que desconhecem o nordeste, mas, sob outra perspectiva, pode ser simplesmente redundante. Porém, para evitar qualquer forma de sentença, voltemos à questão da adaptação como um segundo texto e pensemos como um exercício mais introspectivo e individual. Pensemos como um convite à uma releitura guiada. Não estaríamos, então, lendo Morte e Vida Severina: estamos acompanhando a leitura particular de Odyr do poema de Cabral. Estamos em sua cabeça, vendo as imagens que surgem à medida que o segundo autor lê as quadras do auto de natal. Dessa forma, a grafiação se torna mais relevante do que o que de fato é mostrado. As ilustrações não são meras imagens; são o correr de um rio e o balançar do mato e da grama ao vento. Elas, por si só, expressam melodia e individualização para os cenários e apagamento para os Severinos, que são pequenos na vastidão e retraídos quando em presença de outros. 

Além disso, Odyr propõe uma perspectiva que redimensiona Morte e Vida Severina para fora do retrato convencional da vida do sertanejo. Isto é, um nordeste colorido, com vegetação e água, em contraste à imagem de seca e de vazio, mas que, ainda assim, existe em paralelo ao nordeste de pobreza. Uma dicotomia visual que ecoa a antítese do próprio título do poema. Outro exemplo disso é quando o retirante chega ao Recife e observa, do mocambo, a cidade grande se erguer imponente e indiferente, como expressão da oposição entre as narrativas do Recife como metrópole e o Recife como cidade-mangue.

Por fim, a conclusão desse texto acaba assumindo um caráter dúbio, pois não tem o que concluir. Ele é — ou se propôs a ser — um convite à reflexão, um breve pensamento sobre adaptações disfarçado de crítica que, como tal, não busca defender uma visão ou um juízo de valor ou uma leitura particular sobre a obra em questão. Há uma visão, há um juízo de valor e há uma leitura — com toda certeza —, mas sem marinha e exército, suscetível a complementos, contra-argumentos e o desprezo de qualquer um. Portanto, fique à vontade.

*Nascido em Natal, RN, Gabriel L. M. Cavalcanti é formado em Letras – Francês, pela UFRN, e atualmente faz mestrado em Estudos Literários na UFSM, apesar de pesquisar Histórias em Quadrinhos. É o autor dos zines Sonhos Marcianos para Terrestres Afogados e Retalhos, impressos de maneira independente. Teve textos publicados em antologias, tanto em prosa quanto em verso. E escreve (lentamente) críticas sempre que pode.

** Morte e vida: severina foi gentilmente enviado ao Balbúrdia pela editora Quadrinhos na Cia. A MC também foi convidada a participar de ação de divulgação do livro, disponível aqui.

Publicado por mckamiquase

Maria Clara Ramos Carneiro on ResearchGate https://orcid.org/0000-0003-2332-1109

2 comentários em “[Com vocês] Gabriel Cavalcanti: Psicologia da adaptação com a fábula de Odyr pelo Capibaribe

  1. Excelente análise, não esperava menos do Gabriel! Realmente me despertou interesse na obra, como fonte de inspiração visual e uma apreciação literária. Abraços.

    Curtir

E o que você acha?