
Sobre o Parlatório: isto é um experimento. E uma coluna nova. Desde o início, tínhamos esperanças de que o Parlatório teria potencial pra ser uma das investidas mais interessantes do Balbúrdia, com entrevistas mensais com autores e operários dos gibis. No meio de um dos muitos bate-papos que temos diariamente em relação ao blog, surgiu a ideia de testar uma espécie incomum de entrevista, em que seria feita apenas uma pergunta, bastante abrangente, e haveria mais de um entrevistado. Dessa forma, teríamos opiniões diferentes, de várias pessoas a respeito de um mesmo tema. Mesmo que as respostas incitassem mais perguntas, a ideia pareceu interessante o suficiente para fazer uma tentativa. Então, aqui está, o primeiro Parlatório, uma tentativa.
Sobre a pergunta: achamos válido tocarmos no ponto da balbúrdia (hã, hã) relacionada ao Oscar deste ano. Não deu pra ignorar a descarada falta de indicados negros e achamos que seria deveras pertinente perguntar a opinião de algumas pessoas que admiramos. Então, agora que estão apropriadamente contextualizados, aqui vai:
Estamos diante de um BOICOTE AO OSCAR DE CARÁTER RACIAL, iniciado com uma declaração de Spike Lee de que ele e a esposa não compareceriam ao evento. Vários atores apoiaram a atitude, que ganhou caráter de movimento e grande repercussão nas redes sociais. Sabemos que a luta vai além do palco, mas a representatividade divulgada ali gera frutos e abre portas. Ainda existe gente que diz que “se não há candidatos negros, é por que não há atuações de destaque”. Poderia falar um pouco sobre a situação? Acha que as premiações de quadrinhos no Brasil refletem o mesmo problema?
Respostas:
Marcelo D’Salete (autor de Cumbe)
Premiações são uma forma de destacar uma obra em certo contexto. Imaginamos que essas escolhas são isentas, mas há influência do momento, de posições políticas e de muita subjetividade dos jurados. Uma eleição como essa, apesar de ser feita por um júri específico, dialoga também com um público maior e está sujeita a crítica. A premiação do Oscar reflete uma ideologia em suas escolhas. Essa forma de pensar é influenciada pela história, pelos diversos dilemas que enfrentamos e pela invisibilidade de certos grupos diante do poder hegemônico. Isso acaba definindo as escolhas, mesmo que inconscientemente, dos jurados. Creio que por motivos como esse, temos pouquíssimos negros premiados. Há todo um imaginário discriminatório e institucional que impede deles serem vistos para além de estereótipos. A atitude do Spike Lee explicitou o problema. A ausência de indicação de atores negros revela a necessidade de ampliação dos horizontes dessa seleção. Há alguns anos, o filme 12 anos de escravidão, do diretor negro Steve McQueen, ganhou o Oscar de melhor filme e de melhor atriz coadjuvante. No entanto, infelizmente esse caso específico não contradiz uma tendência de exclusão desse perfil de atores. Não sei exatamente como superar esse problema, mas a discussão desta pauta é muito importante para avançar. Talvez a diversificação do júri ajude, todavia isso depende de um conjunto de medidas amplas e não apenas de ações isoladas. Garantir que existam profissionais negros nos diversos setores da indústria também é essencial. Em Angoulême houve algo parecido DEVIDO A NÃO INDICAÇÃO DE NENHUMA MULHER para o prêmio de melhor cartunista neste ano. Os organizadores precisaram voltar atrás. O lado positivo é que talvez o erro não se repita no futuro. No Brasil, os eventos de quadrinhos poucas vezes premiaram artistas negros que discutam essas questões em suas obras, creio. Por outro lado, o prêmio Ângelo Agostini, no ano passado, destacou a discussão sobre quadrinhos africanos e o FIQ de 2013 trouxe para o Brasil um artista negro do Congo, o Jeremie Nsing. Já é um avanço. As premiações de quadrinhos no Brasil, geralmente realizadas pelos profissionais da área, talvez precisem pensar em quem são seus votantes. Este é um grupo realmente heterogêneo? Se esse conjunto de votantes ignorar esse debate, como faz boa parte de nossa sociedade, dificilmente vamos avançar para aprofundar essa discussão.
Dandara Palankof (tradutora e pesquisadora)
Acho interessante o tipo de declaração que você citou – “se não existem negros indicados, é porque negros não se destacaram.” É como se a seleção fosse feita de forma automatizada e total: uma máquina analisou TODOS os filmes produzidos nos Estados Unidos e o resultado foi que, realmente, não havia atuações, direções ou produções feitas por negros que sejam dignas de um prêmio esse ano…
O que acontece é justamente que o racismo, que é institucionalizado, entranhado em todos os setores da sociedade, se mostra de várias formas. O apagamento de representatividade é uma delas. E isso se dá a partir do momento em que você tem somente pessoas pertencentes ao grupo que detém esses mecanismos de poder em posições de decisão sobre essas questões. Essas pessoas, mesmo que não necessariamente mal-intencionadas (declaradamente racistas, no caso), possuem a tendência de ver o mundo de acordo com a sua realidade – o que é compreensível, mas não justificável. Então, o produtor acostumado às práticas machistas não vai questionar por que a personagem feminina é só um objeto decorativo; o diretor branco não vai questionar se o elenco pode ser formado com maior diversidade se isso não estiver explícito no roteiro. Porque é assim que esses mecanismos se perpetuam: por uma anuência alienada. Quem não sofre a parada na pele raramente se toca de que, involuntariamente, pode estar ajudando a manter esse sistema. O mesmo aconteceu com Angoulême.
A saída da Academia, no caso, foi justamente a mais adequada: tentar promover maior diversidade entre seus votantes; incluir pessoas que estejam atentas aos caminhos paralelos ao status dominante. Essa atenção, muito provavelmente, vai virar indicação a outros trabalhos que não sejam necessariamente reféns dessa lógica de dominação a qual a indústria está/se sujeita. Poderia ser também o caso em Angoulême.
No Brasil, acontece, sim, a mesma coisa. Acho que acontece em qualquer lugar, na verdade. O problema é quando a coisa é muito descarada. Mas é tudo reflexo de como nossa sociedade funciona. Quadrinhos não são um meio de consumo barato e tinham (têm até hoje) um trabalho questionável de representação em vários aspectos, então, como transformar o meio em algo mais diversificado, atraindo leitores e aspirantes a artistas de diferentes gêneros, orientações, raças, classes? Falando especificamente do meio, a internet tem sido uma ferramenta muito útil pra popularizá-lo, fazer com que mais pessoas queiram se meter nele. E problematizar, através dos gibis, todas essas discussões, principalmente quando elas fazem parte de seu cotidiano – olhaí o D’Salete, por exemplo. Mas ele ainda é o único, pelo menos até onde eu sei, a tratar de forma muito explícita as questões concernentes aos pretos brasileiros.
Além disso, estamos passando por um novo questionamento sobre essas amarras sociais, essas práticas de marginalização, em todas as esferas. Não sei SE A TRETA COM O HQMIX teria acontecido, digamos, 5 anos atrás. E que bom que aconteceu! Em compensação, depois de toda a discussão sobre Angoulême, quantas mulheres foram indicadas ao Troféu Ângelo Agostini, que recebe indicações por voto aberto? Ainda vivemos, sim, uma situação de total disparidade e de visibilidade reduzida no que diz respeito às minorias – nas histórias em quadrinhos, na TV, no cinema, em tudo. Mas as coisas estão mudando, sim. Só o fato de o debate estar em pauta como nunca esteve é sinal de que podemos transformar as coisas pra melhor.
Carlos Ferreira (roteirista de Os Sertões – A Luta e de Zumbi – Guerreiro dos Palmares)
Estamos vivendo um momento de mudanças, mas não sei realmente para onde vamos sobre essa questão do racismo. Às vezes, parece que sim, avançamos, mas se olhar profundamente há extremos ainda mais radicais. Olhamos o mundo, a África nunca esteve tão miserável. E esta miséria não é racista. Pois sobre esta posição do Spike Lee, tudo que quebra a posição conformista do mundo. Tudo que revela o podre, tudo que busca um mundo mais justo e melhor é necessário. Acho que o Brasil ainda é um bebê sobre os quadrinhos. Não temos mercado. Ainda nos encaminhamos pra isso. Claro, que há um forte racismo nas temáticas. Mas quadrinhos ainda são uma profissão onde a maioria é miserável. Somos a maioria como o Rango, do Edgar Vasques.