[De A a Z] Sobre ser cartunista

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Arte de Terry Gilliam

Em fevereiro, completei um ano de colaboração com cartuns para o caderno Ilustríssima, da Folha de São Paulo. O que deu pra pensar sobre isso até agora?

O humor gráfico é presente em mim de diversas formas, e demorou pra eu entender isso. Na adolescência, o que eu mais gostava ao assistir Monty Python era das animações de suas aberturas. Ok, gostava dos sketches em si, mas era uma disputa acirrada. O exagero dos anos sessenta e setenta, em cores quentes, curvas e Crumbs mirrados com suas minas gigantes – algumas noções de sucinto ainda demorariam pra se sedimentar na minha cabeça. Professores me pediam – escreva menos! – nas provas.

Pra todo mundo que quer fazer quadrinho, começar pelo cartum costuma ser um caminho natural. Afinal, o cartum é composto por apenas um quadro – um passo tranquilo a ser dado para quem observa o abismo que vem pela frente. Há quem diga, também, que a linguagem irônica e leve do cartum pode ser mais facilmente emulada, já que estamos sempre recorrendo ao humor, qualquer que seja, pra suavizar nossos infernos pessoais. Cartum, charge, caricatura: essas linguagens estão impregnadas em nós – nós, que não crescemos lendo jornal, que não somos filhos do Pasquim, mas passamos os anos escolares desenhando a cara feia do professor no caderno ou imortalizando algum intelectualoide da academia em alguns rabiscos toscos, ainda lendo uma ou outra revista Mad velha jogada na casa daquela tia. Nós, que a todo momento nos autodepreciamos na internet em busca de algumas risadinhas da galera.

Os anos que passei estudando desenho foram importantes pra testar a minha acidez em cartuns, que começou bem tímida, mas foi ajudada pelo caráter experimental do processo. Nem os quilos de revista Mad, nem a infância acompanhada de Los Três Amigos tiraram minha inibição na hora de criar a minha própria zuera.

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Cartum de 2016

Ao fazer quadrinhos, encontrei aquela dificuldade tão familiar a quem se dispõe esboçar uma página que seja: não repetir, no texto, o que já era dito pela imagem. Fazer cartuns que sejam publicados para qualquer recorte de público gera outras indagações: a mensagem é compreensível? Melhor que isso, a mensagem é EFICAZ? Cumpre o seu papel ou apenas vai tirar um sorriso constrangido de três leitores? A gente sabe que quadrinista curte passar vergonha, então continuei produzindo mesmo tendo a consciência de ainda precisar elaborar minha técnica e o modo como o conteúdo era transmitido nos cartuns.

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Em 2016, fiz alguns cartuns em inglês para relatar a situação do Rio de Janeiro nas Olimpíadas para o site The Norwich Radical

A vontade de experimentar e a liberdade assustadora de começar do zero me levaram, em 2017, a fazer tirinhas para postar no Instagram, cujo formato quadrado de posts reformulou (pra sempre? não sei) a maneira como lemos quadrinhos e tirinhas na internet / no celular. Esse formato quadrado me ajudou a me organizar melhor espacialmente e buscar uma linguagem mais sucinta e sarcástica para as tiras que fiz.

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Tirinha de 2017
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Tirinha de 2017

Produzir essas tiras meio nonsense me possibilitou desenvolver, mesmo que de forma gradual, a linguagem que venho usando desde que comecei a publicar cartuns no caderno Ilustríssima, na Folha de São Paulo. Publicar cartuns em um jornal de amplo alcance levanta, além das questões que mencionei anteriormente, outras: qual é o meu diálogo com leitores de jornal que, provavelmente, não me darão um feedback direto do meu trabalho como é mais comum acontecer com desenhos publicados pela internet? Em que tipo de retorno eu devo me basear para entender se um cartum publicado em um jornal cumpriu ou não a sua função? Qual é, exatamente, a função de um cartum em um jornal?

Some-se tudo isto ao fato de, na época em que comecei, era a única mulher no grupo de cartunistas da Ilustríssima. Foi uma felicidade e um alívio saber que esse quadro logo mudou, mas ainda há trabalho a ser feito. Preciso lembrar, aqui, o que significa ser mulher e fazer cartum/quadrinhos? Acho que não. Espero que não.

Levando em consideração os ainda poucos alcance e atenção dados ao trabalho de mulheres cartunistas brasileiras, idealizei o projeto “Políticas” (instagram.com/politicashq) com Carol Ito, Thaïs Gualberto e Dani Marino, com o objetivo de dar mais visibilidade a quadrinhos políticos, cartuns e charges feitos por mulheres. Não estou mais vinculada a esse projeto, mas ainda respeito e apoio totalmente o trabalho que tem sido desenvolvido nele. Nós tivemos a oportunidade de falar melhor sobre o assunto aqui.

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cartum publicado na Folha em julho de 2017

À parte dos problemas associados a ser mulher e fazer quadrinhos, todo cartunista enfrenta algumas questões básicas na sua produção. Levanto, aqui, os impasses mais comuns apontados no grupo Zine XXX (grupo de discussão para mulheres quadrinistas):

Trabalhar o tema de forma original. Cartum é humor e resumo. Respiramos isso o dia inteiro em redes sociais, mesmo sem querer. É preciso fazer um trabalho constante para não dar umas escorregadas em lugares-comuns – algo muito delicado, já que o objetivo é elaborar um cartum que seja claro para a maioria dos leitores. Por isso, observar vários pontos de vista acerca do tema que se está observando é essencial. Mais do que nunca, um desafio, também, em tempos como estes, em que precisamos bloquear certos usuários pra manter a nossa sanidade mental.

Evitar uma abordagem pessoal demais. Parece, no mínimo, absurdo tentar fazer um trabalho original e, ao mesmo tempo, sem subjetividade. Quando se pensa em humor, também parece complicado evitar algum tipo de ambiguidade, já que trata-se de uma ferramenta importante para desestabilizar o leitor. Uma medida a se tomar é mostrar rascunhos do cartum para o máximo possível de amigos – quanto mais diversificados cultural e politicamente, melhor. É óbvio que o cartum não se exime de expressar um ponto de vista do autor, mas essa opinião, mesmo que permeada de jogos linguísticos, pode ainda ser expressa de modo claro. A ambiguidade, no caso, tem sucesso quando os dois termos que a constroem fazem parte do repertório da maioria dos leitores – quanto mais se faz cartum, mais se exercita o domínio desses repertórios. Essencial, também, é lembrar que nunca se terá domínio completo sobre como as pessoas interpretam ou avaliam um cartum. Pra quem produz qualquer tipo de arte isso parece óbvio, mas é sempre bom ter em mente que, por mais que nos preocupemos em usar síntese e clareza (e fazer uma piadinha legal), o resultado é sempre incerto. Os cartuns que achei que as pessoas odiariam foram os mais elogiados, e vice-versa.

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Capacidade de Síntese. Quanto mais amigos analisarem o cartum, melhor. O importante, além disso, é que alguns desses amigos sejam nem leitores de quadrinhos nem de cartuns – ou seja, pessoas que possam analisar de forma mais direta o que acabaram de ler, sem ruídos críticos. A falta de espaço já induz à pouca quantidade de texto; mesmo assim, é essencial cortar o máximo possível de palavras: fazer cartum é uma atividade que me é muito prazerosa e instigante também por me fazer voltar à atividade de explorar o potencial das palavras, algo que não faço desde que parei de escrever poesia. A objetividade visual do cartum também conta para que seja bem interpretado: cada detalhe e diferenciação no traço do autor influencia em sua leitura. Não há fórmulas técnicas a seguir – o que conta, assim como no texto, é explorar o possível da solução gráfica encontrada para cada cartum. Para tomar tais decisões, o prazo curto, considerado por muitos como algo que atrapalha, pode ser um grande aliado. Temos que aproveitar a rapidez do cartum para não nos apegarmos a ideias que deram errado, o que ajuda também nos processos mais longos do fazer quadrinhos.

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cartum publicado na Folha neste mês

Não me parece interessante chegar a uma conclusão ou recomendar a artistas a maneira certa de fazer cartum. O que espero é ver produções, em jornais ou online, que nos instiguem a refinar cada vez mais o nosso sarcasmo e a nossa sagacidade ao interpretar o humor gráfico.

Por fim, aí vão algumas dicas de mulheres cartunistas cujo trabalho vale a pena conhecer:

Aline Lemos – instagram.com/desalineada_

Fabiane Langona — instagram.com/chiqsland

Laura Lannes — instagram.com/lauralannes

Lovelove6 — instagram.com/odiozinho

Carol Ito — instagram.com/carolito.hq

Thaïs Gualberto — instagram.com/thaiskisuki

Luli Penna — instagram.com/lulipenna

Thais Linhares — instagram.com/thaisqlinhares

Carol Andrade — instagram.com/barbiecospefogo

Francisca Nzenze (Chiquinha) — instagram.com/chiquinha_nzenze

Titi Carnelós – instagram.com/titicarnelos

Maíra Colares — instagram.com/mairadraws

Kellen Carvalho — instagram.com/velha.cosmo

Júlia Nunes — instagram.com/codornatrepidante

Lila Cruz — instagram.com/colorlilas

2 comentários em “[De A a Z] Sobre ser cartunista

  1. Aline, muito massa. Acho que você deu boas dicas pra se lidar emocionalmente com a produção do cartum, tipo mostrando pro máximo de pessoas possíveis (quando faço cartuns, acho que muito da ambiguidade que me incomoda depois poderia ser amenizada ou mesmo evitada se eu compartilhasse mais o processo com as pessoas à minha volta). Também essa dica de explorar a ênfase das palavras em detrimento da quantidade delas, é pra se manter em mente. Gostei muito das suas observações da questão de gênero dentro do seu role profissional e da indicação das autoras, você é foda! 🙂

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