Tem quem vive sozinho e tem quem vive com animais de estimação. O álbum Viagem em Volta de uma Ervilha, de Sofia Nestrovski e Deborah Salles (Veneta, 2019) trata de forma bastante lírica essa convivência.
Depois da parceria em Minha Casa Está um Caos (Antílope/MIS, 2018), Sofia Nestrovski e Deborah Salles aparecem com esse livro mais longo e, pra mim, mais bem resolvido que o seu anterior.
Não é todo dia que se acha uma parceria entre roteirista e desenhista que funciona tão bem (embora eu ache que “funcionar”, de “funcional”, não seria bem o termo – já me explico). O texto de Nestrovski tem a manha de literatura, uma palavra chama outra; uma ideia aparentemente largada à toa na frase é reaplicada mais adiante e me dá o sentimento de unidade, uma unidade harmônica. As palavras vão contando o cotidiano dessa casa que já foi um caos em outro livro e agora está bem organizadinha, apesar de seu elemento desestabilizador, a gata Princesa Ervilha (quem convive com felinos sabe que chamar gato de “elemento desestabilizador” não é ofensa nem exagero).
O desenho de Salles com linhas precisas e sem hachuras (que só aparece no pelo da gata) tem aquela difícil missão de achar soluções para lidar visualmente com um texto tão bem resolvido, de como ser algo a mais ali que não a mera ilustração de alguma palavra, do reforço de alguma das ações descritas. E a resposta que a desenhista dá é histórias em quadrinhos. O uso perspicaz da página, ao diminuir e aumentar quadrinhos e colocá-los em lugares diferentes do espaço, além de compor as formas com o texto, cria o ritmo da narrativa sem atropelar as palavras.
O uso pontual da cor magenta, recurso muito simples (mas nem por isso menos inteligente) traz certa ambientação e volume às páginas. Em meio ao preto e branco, a cor não é nada discreta e puxa meu olho leitor pra ela e, mesmo assim, a harmonia persiste.
A personagem Sofia diz que está em meio ao mestrado, em que estuda poesia romântica (o livro brinca com elementos autobiográficos, mas isso pode ficar um pouco à parte na leitura que proponho). O uso do espaço da página é algo muito importante pra poesia moderna (talvez não seja praquela da dissertação da personagem, não tenho certeza) e o uso que as autoras fazem da página de quadrinho e da distribuição de seus elementos no branco da folha tem procedimentos e força poética. E agora explico aquele parênteses lá de cima.
Justamente ao ser “poético” o processo narrativo, ele dispensa ser funcional. Não se trata aqui da recusa romântica da utilidade da arte, mas da recusa moderna do utilitarismo do meio expressivo. A linguagem nem sempre precisa ser funcional, nem toda arma na narrativa precisa disparar, podem existir bolsões de pacificação, espaços líricos.
Mas e a Princesa Ervilha? Bem, todos esses artifícios narrativos e poéticos que vejo no livro acompanham a relação de Sofia com a gata, com ocasionais aparições da Deborah, em esperto artifício de metalinguagem. Gosto muito das partes mais delirantes, em que Princesa Ervilha e a humana viajam pelos livros, principalmente, porque o traço se mantém e o que muda mesmo é o uso dos elementos já apresentados: personagens, palavras, cores, quadrinhos, distribuição pelo espaço da página.
Já disse muita coisa que gosto em Viagem em Volta de uma Ervilha, porém, mais que tudo, me encanta como o formato de “protagonista do mundo da escrita com seus pensamentos e pequenas ações”, que poderia cair na mesma armadilha de tantos livros sem graça da prosa contemporânea (ou até na sub autoajuda fofa com gatos), se desvia e vai além, bem além. Credito isso ao uso certeiramente lírico das palavras, à quadrinização poética e a permissão que as autoras deram da realidade se contaminar pelo fantástico.
(e, claro, a gatinha é muito fofa)
Agradecimentos à Veneta pelo envio do livro.