Mais um trabalho de Daniel Clowes chega ao Brasil, viva! David Boring (Nemo, 2019, tradução de Jin Anotsu) é uma história policial daquele jeito meio torto do autor norte-americano.
Primeiro, vale dizer que essa corrida da editora Nemo para colocar pelo menos um livro do Clowes na rua todo ano é de louvar repetidamente. Afinal, ele é uma das figuras mais importantes e conhecidas da seara dita alternativa dos quadrinhos nos Estados Unidos a partir do final dos anos 1980, comecinho dos 90 (a primeira Eightball, revista do Clowes, é de 1989).
Muita gente compara o Clowes ao diretor David Lynch, mas não acho que a aproximação seja das mais precisas. O que vejo em comum entre os filmes de um e os quadrinhos de outro é certo entendimento obscuro, situações pouco prováveis e bastante inusitadas. Porém, tem algo que considero diferença essencial entre as duas poéticas: Lynch trabalha no onírico (ia usar sonho, mas tudo parece mais angustiante como pesadelo pra mim) e Clowes no mundo material. Mesmo quando o quadrinista inclui algum elemento da ordem do fantasioso na história, se aproxima da materialidade, como em um realismo mágico.
(não que eu veja muitos paralelos entre, sei lá Gabriel García Márquez e Daniel Clowes, mas a ideia do fantástico ou maravilhoso em meio a vida dita ordinária [o paralelo adequado seria mesmo o meu mui amado Palomar, de Gilbert Hernandez e a literatura de Gabo]).
David Boring, como boa parte da obra do autor, é subversão de gênero, de colocar o tal gênero narrativo pra trabalhar pra poética clowesiana (agora pareceu texto de tese, daqueles bem sérios). O que chamo de poética aqui pode ser pensado como os elementos que mais repetidamente dão as caras nos livros que o autor faz, seja seu aspecto visual, temático ou textual.
No caso desse livro é a narrativa de naufrágio, de traições familiares e de apocalipse tudo meio junto, com participação de adolescentes que não sabem lidar com a sexualidade, pessoas normais e reviravoltas.
A base da história é um pouco da pessoa presa no bunker que é convencida repetidamente que não pode sair porque há o fim do mundo lá fora e daí nem o personagem nem quem lê sabe se realmente tá tudo zoado ou se se trata de um sequestro mesmo (o episódio da metal Hurlant Chronicles “Me Dê Abrigo” ou aquele filme safado com Mary Elizabeth Winstead Rua Cloverfield, 10), com evidências que apontam para um e outro (diferente do esquema em PowerPoint do Deltan, as setas apontam pra fora e não pra dentro [e também não tem a ver com o Lula]).
A arte de Clowes, altamente reconhecível, é o preto e branco com bastante hachuras (mas nem tanto quanto o Charles Burns), encaixada em uma grade de narração de nove quadras, com algumas variações e aglutinações de painéis, mas tudo bastante tradicional. O inusitado está nas formas de abordagem das temáticas, não na linguagem que as apresenta.
Por um lado, o do personagem, a introspecção, por outro, o da trama, o desabar do cotidiano. No ponto da mistura deles, está Daniel Clowes.