Livro coleta todas as história que um revolucionário artista fez para a EC Comics em O Perfeito Estranho, de Bernie Krigstein (Veneta, 2018, tradução de Dandara Palankof).
Tem alguns livros que se tornam marcantes e interessantes porque ultrapassam a primeira dimensão do que se propõem. E este O Perfeito Estranho é um belo exemplo dessa tese. Vem comigo.
Em uma leitura bem por cima do livro, esse hipotético leitor que só quer ler boas histórias de ficção e terror vai ficar satisfeito, afinal, o material da EC Comics não é considerado O FINO da época a toa. Krigstein desenhou todas as histórias da edição, com roteiros escritos por diversos outros autores e, salvo histórias que o tempo tornou um pouco tolas e outras que são machistas e inadmissíveis hoje a qualquer pessoa sensata, as histórias são bastante interessantes. No geral, as tramas têm uma pegada que me lembra o seriado Além da Imaginação: criatividade em brevíssimo espaço ficcional; 22 minutos no caso da série de TV, 5 a 7 páginas para os quadrinhos.
Imaginemos um segundo leitor, interessado não apenas nas histórias, mas em forma e linguagem de quadrinhos e tá lá, outra pessoa-hipótese satisfeita! Como o espaço era de poucas páginas, Krigstein sentia necessidade de mais terreno gráfico para narrar as tramas. Vejamos, se o tamanho da página não pode mudar e a quantidade delas também não pode, só restou a Krigstein aumentar o número de quadros e, desse modo, influenciar muitos autores que depois influenciaram todo mundo, tipo Jim Steranko, Frank Miller e Art Spiegelman.
Em uma rara história de 8 páginas, o artista entrega um clássico dos quadrinhos norte-americanos, “Raça Superior” (“Master Race”, no original), em que a forma narrativa de quadrinhos mostra grande potência. A edição brasileira traz as histórias em preto e branco, e torna ainda mais evidente a finalização e o cuidado de Krigstein com suas páginas.

Há um terceiro naipe de leitor hipotético que pode se interessar pelos dois primeiros e também por uma perspectiva histórica, de como Krigstein e a EC Comics se tornam relevantes e aí vai mais um tipo de leitor que encontra o que procura em O Perfeito Estranho, pois a edição vem com vários paratextos, inclusive um comentário história a história de Greg Sadowski. Esse contexto todo leva uma compreensão melhor do período e a hipótese bastante plausível de que o código de ética dos quadrinhos surgiu para derrubar a EC Comics, que ousava ir a terrenos criativos que a National (atual DC Comics) não queria.
Além disso tudo, ou melhor, ao juntar isso tudo, há outra leitura que se pode ter deste livro, que é sobre o trabalho e processos de trabalho. Ao comparar os paratextos com a leituras das histórias, pode-se acompanhar o processo de Krigstein entender cada vez mais o funcionamento da linguagem dos quadrinhos, sua proposta de ir a lugares narrativos que ainda não tinham sido investigados e sua desilusão com os maus pagamentos e baixo reconhecimento, o que o leva a produzir histórias bastante burocráticas, apenas para cumprir a encomenda e receber o seu pagamento.
Tantas possibilidades de leitura são fruto de uma obra que se ramifica para várias direções e se mostra em diferentes formas a diferentes tipos de leitor e a um trabalho de edição que lança luz sobre essas diferentes possibilidades.