
A partir de um contexto histórico-político-social conturbado, despontam na Europa do início do século XX tendências artística que colocavam em xeque as convenções de representação que já vinham perdendo espaço desde o final do século anterior. As assim chamadas correntes de vanguarda punham em marcha práticas artísticas inovadoras, radicalizando com as formas de representação do espaço, abdicando-se da perspectiva e da representação mimética da realidade. Liberdade criativa era a palavra de ordem que mobilizavam os artistas em diversas frentes, como o Cubismo, o Futurismo e o Surrealismo, para citar algumas.
Como a história nos mostra, em algum momento a novidade se torna tendência, e a tendência se transforma em lugar comum, e o que é um dia vanguarda, logo se torna retaguarda. Essas experiência inovadoras foram aos poucos perdendo espaço para outras questões formais, conceituais e sociais que não cabem aqui. O que nos interessa no momento é a persistência dessas experiências modernistas nos quadrinhos contemporâneos que, de uma forma ou de outra, atualizam seus princípios e desafiam os leitores mais conservadores.
Quando um mestre da narrativa encontra um mestre do pictórico, quem ganha é o leitor de quadrinhos. Em INFORME SOBRE CEGOS de Alberto Breccia (Figura, 2020, tradução de Rodrigo Rosa), adaptação de um fragmento da obra Sobre heróis e tumbas, texto seminal de Ernesto Sabato, o destaque vai para a plástica assumidamente experimental de Breccia que, para além do texto do grande escritor argentino, se utiliza de composições inusitadas por meio das técnicas de colagem e frottage (método de captação de texturas em uma superfície por meio da fricção) que evidenciam seu apreço pela textura e pela experimentação.
O trabalho gráfico busca, com sua elaborada fatura, um distanciamento criativo da representação mimética das figuras, apostando em uma figuração extremamente estilizada, que seduz o leitor não pelo símile, mas por sua dança quase erótica com a tatibilidade evocada pelo exacerbado estímulo sensorial de contrastes e texturas. As convenções de representação tridimensional do espaço também são abolidas. À maneira cubista, Breccia aposta na planaridade da página, explora e brinca com a composição para sugerir uma multiplicidade de planos sem apelar à ilusão de profundidade. Claro que para dar vida a um universo de cegos em um meio monosensorial como os quadrinhos, resta a Breccia prestar uma reverência, por meio da visão, à percepção tátil evocada pela fatura.
Nesse sentido, Breccia se distancia da prática usual de cubistas da envergadura de Pablo Picasso e Georges Bracque na medida em que estes dispunham em suas colagens, “recortes do mundo” nas telas, destruindo o sistema de representação clássico, buscando evocar um sentido matérico, remetendo à “coisa em si” que não mais se encontra representada mas presentificada, como na obra Guitarra que Picasso realizou em 1913, onde a madeira está lá necessariamente para sugerir o violino.


As colagens de Breccia por sua vez, não dispõem dessa necessidade, pelo contrário, as texturas e fibras dos papéis colados não estão lá para serem presentificados, mas para que suas qualidades tácitas contribuam com a representação, resultando em um jogo sedutor em que a expressão gráfica de Breccia sugere uma representação figurativa sem alienar a matéria utilizada para esse fim, caminhando na linha tênue da abstração. Se o interesse de Picasso e Georges Bracque é implodir a representação clássica, o de Breccia é erotizá-la e subvertê-la.

Informe sobre cegos guarda ainda outros ecos das vanguardas artísticas europeias em sua poética, como a exploração de técnicas como a já mencionada frottage, amplamente utilizada por surrealistas como Max Ernst, a atmosfera onírica presente tanto no texto de Sabato quanto na expressão gráfica de Breccia, e a abolição da mimese como convenção de representação figurativa e espacial que alcança o seu ápice em Picasso (mais uma vez!) que se faz presente também por meio de uma homenagem direta a Guernica.
Já RESIDUAA do espanhol Sao. (Selo Risco Impresso, 2020), nos apresenta uma instigante progressão pictórica, uma espécie de cacofonia visual que nos remete a toda a emergência e velocidade que foram muito caras ao movimento de vanguarda italiano conhecido como futurismo.

Sao. abre a HQ destrinchando a etimologia da palavra “trazar”, do espanhol, “traçar”, o leitor mais atento perceberá que algumas letras foram deliberadamente retiradas, o que causa um “ruído” na leitura que, no avançar das páginas, vão se fundindo ao seu traço geometrizado e de verve cubista. Uma outra aproximação que podemos fazer com o futurismo é o uso de onomatopeias, versos livres e frases fragmentadas, que não seguem a ordem de leitura convencional, surgindo de lugares inusitados, o texto atravessa e é atravessado pelo desenho.

Das convenções dos quadrinhos, Sao. empresta as linhas cinéticas (que ajuda a dar dinamismo e movimento), as retículas (que auxiliam na profundidade dos planos) e o inconfundível balão, que longe de servir de suporte ao texto, se engata às elaboradas sobreposições de planos como uma engrenagem.
A narrativa segue uma mecânica de formação topográfica estrutural e estruturante da imagem gráfica, fazendo com que a superfície pictórica se dobre sobre si mesma, tornando-se informe sobre a posição do que está representado, à maneira de Bracque e suas “rimas plásticas” onde cada forma geométrica de alguma maneira dá continuidade à outra, criando um efeito que, quando devidamente percebido pelo leitor/observador, cria uma certa harmonia em meio ao caos aparente.

Sao. ainda brinca com as possíveis disposições desses planos que assumem uma notável variação de possibilidade de “traçar” um percurso com o olhar que nos remete às topografias impossíveis de Oscar Reutesvärd e M. C. Escher.


ResiduaA não se submete à narrativa convencional, pelo contrário, propõe um percurso inusitado para o olhar, ao passo que atualiza de forma inventiva estratégias poéticas de vanguarda, fugindo de uma experiência linear e racional, ao adotar o sensorial como veículo condutor da experiência de leitura.
O termo vanguarda, vem do francês avant-garde, que significa “o que marcha na frente”. Era utilizado antes da Primeira Guerra Mundial e da invenção das trincheiras para nomear o destacamento frontal do exército que marchava à frente, o primeiro pelotão a avistar a saraivada de balas do exército inimigo. Seu uso metafórico para se referir ao pioneirismo, consciência e combatividade daqueles que “tomam a frente”, serve aqui para pensarmos o trabalho de Breccia e Sao. que, cada qual a sua maneira, se arriscam em experimentar com a linguagem dos quadrinhos.
Não sei ao certo se realmente existe uma “vanguarda dos quadrinhos” no sentido de um movimento coletivo e consciente que busca transformar e inovar a linguagem. Tampouco posso afirmar que existam “quadrinhos de vanguarda”, partindo do princípio de que as vanguardas como movimento estético-artístico já tiveram seu tempo e ficaram na história.
Independente disso, acredito que a vanguarda está nos quadrinhos.