
Estamos de volta com mais um artigo da série sobre a leitura do livro CASE, PLANCHE, RÉCIT: COMMENT LIRE UNE BANDE DESSINÉE ou QUADRO, PÁGINA, NARRATIVA: COMO LER UMA HISTÓRIA EM QUADRINHOS, de Benoît Peeters.
Na última coluna, acompanhamos a reflexão de Peeters a respeito da sofisticação presente nos layouts de autores como Winsor McCay e Frank King que, ainda no início do século XX, além de dominarem a retórica do sentido de leitura, já eram capazes de jogar de forma inventiva com a sequencialidade convencional (como exemplificada em Töpffer). Muitos de seus quadrinhos propunham outros percursos de leitura não linear e ao mesmo tempo, complexos e inventivos, que por razão ainda desconhecida, vão ser esquecidos por algum tempo e “redescobertos” e explorados décadas depois.
Feita essa pequena rememoração, seguimos com a leitura do penúltimo capítulo.
O legível e o visível
A tônica deste capítulo é o que poderia ser chamada de “tensão” entre a imagem e o texto, o visível e o legível.
De Flaubert à Mallarmé, Peeters procura pontuar uma certa resistência histórica às ilustrações, tidas pela elite letrada como forma fechada e redutora da subjetividade se comparada ao texto literário, mais aberto e que contaria com a inequívoca participação de quem o lê. Logo, as ilustrações em um romance, por exemplo, só fariam limitar e tolher a imaginação do leitor, e não seriam capazes de, minimamente, instigar a sua fabulação, como defende Flaubert: “Uma mulher desenhada parece uma mulher, só isso. A ideia é, portanto, fechada, completa, e todas as frases são inúteis, enquanto uma mulher escrita faz sonhar mil mulheres”.
Como contraponto a essas afirmativas, Peeters trás um trecho da apresentação que Rudolphe Töpffer escreveu para o seu livro Monsieur Jabot, em 1837, que aponta para o caráter indissociável do texto e imagem em sua obra:
“Este pequeno livro é de natureza mista. Consiste em uma série de desenhos autográficos. Cada um desses desenhos é acompanhado por uma ou duas linhas de texto. Os desenhos, sem esse texto, teriam apenas um significado obscuro; o texto, sem os desenhos, não significaria nada”.
Introdução de Töpffer ao livro Monsieur Jabot

A agudez do pensamento de Töppfer que parece ter claramente a consciência de que essas “Histórias em estampas” apresentam, de fato, uma nova linguagem baseada na complementaridade do legível e do visível: o que o texto fornece é o que a imagem não pode dar e vice-versa.
A clareza das potencialidades dessa nova linguagem vem a ser adensada por outra reflexão feitar por Töppfer no seu Ensaio sobre a fisionomia, em que defende a simplificação formal do traço que caracterizaria um grafismo específico para o que viriam a ser os quadrinhos, pensando em um design não mais mimético, como demandava o desenho clássico, mas sugestivo, atendo-se às características essenciais do que é representado, apenas o suficiente para que o objeto em questão seja reconhecido de pronto.
Segundo Peeters, esse movimento engendrado por Töpffer é uma tentativa de levar a escrita e o desenho ao mesmo nível de pureza, ou, ao menos, constituírem-se de uma unidade.
Ainda hoje é muito comum que autores “completos”, ou seja, que participam de todo o processo de produção: escrevem, desenham e fazem as letras de suas obras, optem, ou até mesmo defendam veementemente a importância de terem o seu grafismo tanto fora quanto dentro dos balões em prol dessa unidade gráfica.
Um caso extremo, por exemplo, é o da Artista Belga Dominique Goblet que ao ter o seu quadrinho Faire Semblant c’est Mentir (L’Association, 2007) vertido para o inglês pela New York Review Books, fez questão de ela mesma letreirar à mão a partir da tradução de Sophie Yanow, reforçando a indissociabilidade do texto-imagem que, especificamente em Semblant c’est Mentir, exerce um papel fundamental dentro da diegese, onde os discursos histéricos são representados com letras grandes e pontiagudas que parecem sulcar a página de forma cortante em contraponto às letras cursivas, circulares, grafadas de forma mais suave, que representam um discurso mais gentil.

Töpffer acreditava que, tão logo o texto seja separado da imagem por um requadro e uma tipografia externa, haveria uma tentação à autonomia por parte do texto, tornando-se um fragmento de uma continuidade literária apartada das imagens.
Ao que indica Peeters, esses “preceitos Töpfferianos” serão rapidamente esquecidos, e a tradição francesa se assentará na fórmula do texto apartado da imagem – como legenda –, privilegiando o desenvolvimento de uma forma de quadrinhos de caráter essencialmente verbal, muito diferente do que acontecia do outro lado do atlântico, com Richard Outcault e seu Yellow Kid (1896) em que o balão de fala devolve o texto à unidade gráfica.

Segundo Peeters, se por um lado, a primeira geração de quadrinistas norte-americanos (Outcault, McCay, King) fizeram avançar a linguagem ao dar primazia às imagens, por outro, também surgiria nos Estados Unidos uma tendência neoilustrativa com Harold Foster e seu Príncipe valente, em que cada imagem é acompanhada de legenda. Essa separação acabava por permitir que os desenhos funcionassem como pequenas pinturas, livres da narração, dando total autonomia ao texto que era capaz de oferecer, por si só, uma história do início ao fim, distanciando-se completamente da preconizada natureza mista e da unidade gráfica proposta por Töpffer.
O mesmo princípio recitativo vai se repetir com o Tarzan de Burne Hogarth e o Flash Gordon de Alex Raymond.

A imagem sem palavras
Nos antípodas dessa tendência, segundo Peeters, parte da história em quadrinhos se desenvolveu de forma decididamente silenciosa, como reação à influência do verbal e ao desejo de privilegiar a visualidade.
Nesse ponto, Peeters parece ignorar os primeiros “romances sem palavras” de Frans Masereel (1889-1972): como 25 Images de la Passion d’um Homme (1918) e Mon livre d’heures (1919), ou as “pictorial narratives”, como eram chamadas por Lynd Ward (1905-1995), autor de God’s Man (1929), ao pular para 1976 com o Arzach, de Moebius.



Por mais atraente que seja, a aposta na ausência de texto só pode levar (a longo prazo) a limitação narrativa, conclui Peeters. E, assim como o cinema mudo estava longe de ser sempre um cinema visual, essa nostalgia da pureza gráfica não leva automaticamente a um aumento da especificidade.
Segundo Peeters, os limites da visualização são, por exemplo, a sugestão de duração. Não tendo as possibilidades sonoras do cinema, a história em quadrinhos só recupera com grande dificuldade a passagem do tempo.
Os limites do visualismo integral, combinados com um desejo muito compreensível de renovar os modos de narração por meio de imagens, levaram a experimentos de outro tipo. Nos últimos anos, multiplicaram-se as tentativas de estabelecer novas relações entre texto e imagens, tanto no aspecto gráfico quanto nas relações semânticas. É o caso de autores como Chris Ware (Building Stories), Richard McGuire (Aqui) e Linda Barry (What it is).

Peeters conclui suas reflexões a respeito das tensões entre texto e imagem fazendo um elogio às próprias dificuldades de síntese entre o visível e o legível no seio próprio dos quadrinhos que provam, ao contrário, não uma limitação, mas uma força e precisão inerente aos quadrinhos como um meio de expressão rico de possibilidades.
Em vez de ver no texto um material heterogêneo e agressivo, os verdadeiros autores da história em quadrinhos, segundo Peeters, o percebem de fato como um dado fundamental, participando plenamente do trabalho gráfico e favorecendo seu cruzamento. Do verbal ao icônico, não há solução de continuidade. Dos índices de movimento (imagens que se tornaram signos) às onomatopeias (signos que se tornaram imagens), são muitos os elementos que proporcionam uma transição fluida entre esses modos de representação.
Entre texto e imagens, unidos graficamente em uma página, muitas coisas ainda precisam ser inventadas.
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Se você está acompanhado e curtindo essa série de colunas sobre o livro do Benoît Peeters, cabe aqui uma dica:
Recentemente Benoît Peeters tornou-se titular da cátedra de “Criação Artística” do Collège de France, uma das maiores distinções do ensino superior francês.
Durante o período de ocupação da cátedra, Peeters ministrará seminários e cursos até janeiro de 2023 sobre “a poética das histórias em quadrinhos” e “Alguns álbuns essenciais”, que poderão ser acompanhadas pelo canal do YouTube do Collège de France. A conferência de abertura intitulada: Un art neuf (Uma arte nova) já está disponível.
A programação completa pode ser acessada aqui.
2 comentários em “[Vá com o Carmo] Especial: Como ler Benoît Peeters – Legível, Visível (Capítulo 4)”