
Estamos de volta! Desta vez com o último artigo da série sobre a leitura do livro CASE, PLANCHE, RÉCIT: COMMENT LIRE UNE BANDE DESSINÉE ou QUADRO, PÁGINA, NARRATIVA: COMO LER UMA HISTÓRIA EM QUADRINHOS, de Benoît Peeters.
Na coluna anterior, acompanhamos a reflexão de Peeters a respeito das tensões entre o legível e o visível. Fomos de Rodolphe Töppfer à Dominique Goblet para compreender a indissociabilidade entre texto e imagem em uma página de quadrinhos, sem se esquecer da tendência “recitativa”, do texto como legenda, que predominou nos quadrinhos franceses pós-Töppfer, e na segunda geração de quadrinistas norte-americanos.
Peeters avança até os quadrinhos silenciosos, lembramos dos primeiros “romances sem palavras” e das “pictorial narratives”, até chegar em Moebius, momento em que Peeters aponta possíveis limites do que ele vai chamar de “nostalgia da pureza gráfica” representado por essa produção que aposta no visualidade como uma tentativa de renovar os modos de narração por meio de imagens, indo até o presente momento em que encontramos experiências mias radicais que multiplicam as tentativas de se estabelecer novas relações entre texto e imagem, tanto no aspecto semântico quanto gráfico, a exemplo de artistas como Linda Barry, Chris Ware e Richard McGuire.
Feito este breve preâmbulo, avancemos para o início – do fim – desta leitura comentada de todos os capítulos de CASE, PLANCHE, RÉCIT, que podem ser lidos aqui: Introdução; capítulo 01; capítulo 02; capítulo 03 e capítulo 04.
Boa leitura!
As alegrias do “autor completo”
Peeters inicia o capítulo salientando a singularidade do processo de criação do chamado “autor completo”, ou seja, daquele que escreve e desenha suas próprias HQs. De Töppfer à Moebius, passando por Hergé, Peeters elenca diversos momentos nos quadrinhos franceses em que as ideias partem dos desenhos, longe de qualquer premeditação literária, como nos casos da criação de Monsieur Crépin (SESI-SP, 2019, organizado por André Caramuru Aubert e tradução de Heloisa Jahn), de Töppfer, que surge direto das linhas gráficas, do traçado, do rabisco, ou em O Mundo de Edena 1: Na Estrela (Nemo, 2013, tradução de Fernando Scheibe) de Moebius, que surgiu de forma quase espontânea a partir da ideia de uma encomenda da empresa automobilística Citröen para uma história de 4 páginas que se tornaram 40, e se seguiu por seis álbuns. Segundo o próprio autor, tudo começou com um desenho:
De início, eu queria que Na Estrela fosse desenhado por dois de meus amigos. Eu faria os esboços a lápis e eles coloririam. Mas um dia, quando estava no ateliê deles para falar do projeto, comecei a fazer alguns croquis e então algo estranho aconteceu: história veio por si mesma. Página após página, começou a crescer sozinha: dez, vinte, trinta, quarenta páginas! Na verdade, em menos de duas horas, eu tinha desenhado toda a história, muito rápido, em forma de esboço. Quando terminei, me dei conta d que eles me olhavam atônitos, e um deles me disse: ‘É a história completa das quatro páginas para a Citroën.
(…) Já fui logo vendo a imagem com os chevrons [(aquelas linhas do símbolo)] da Citroën. Faltava encontrar a história que levasse a ela. Era evidente para mim que esses dois chevrons eram como naves. E o tema veio naturalmente. As imagens foram se sucedendo como se eu estivesse vendo uma história que eu já tivesse feito. O sinal de que um roteiro está funcionando bem reside realmente nessa espécie de fatalidade do desenvolvimento, quando tudo se desenrola assim, com facilidade.
Trecho retirado dos paratextos de O Mundo de Edena 1: Na Estrela. Tradução de Fernando Scheibe.

Essa instantaneidade das trocas entre o visual e o verbal, essa maneira de colocar em jogo a própria questão do desenho na invenção de uma história, essa capacidade de resolver um problema narrativo com uma “sacada gráfica”, uma dificuldade de desenho por uma descoberta literária, parece que eles constituem, para muitos autores que trabalham em colaboração, a própria imagem do paraíso perdido.
Para Peeters, só o “Autor completo” seria capaz de aproveitar ao máximo as especificidades que a linguagem dos quadrinhos pode oferecer.
Na contramão dessa lógica do sonho empregada por Moebius, em que uma história desemboca na seguinte, numa série de sequência oníricas desenhadas sem roteiro prévio, surge uma tradição completamente diferente, que herda do cinema e da literatura popular, a primazia da história que garantiria consistência e continuidade para o sucesso de uma história em quadrinhos.
Na França (mas não só) essa tendência encontra na figura de roteiristas como Jean Michel Charlier cocriador de Bluebarry (com Moebius), e René Goscinny*, cocriador de personagens icônicos como Asterix (com Albert Uderzo) e Lucky Luke (com Morris), uma certa antítese do “autor completo”, que com uma tendência a serem “intercambiáveis”, são capazes de colaborar com diversos artistas, capilarizando e diversificando a sua produção.
*Em 2022 durante 49ª edição do Festival de Angoulême, pela primeira vez, René Goscinny foi homenageado em uma exposição inteiramente dedicada ao seu trabalho como roteirista. A exposição René Goscinny, scénariste, quel métier! (René Goscinny, roteirista, que trabalho!) evidencia o caráter polígrafo da obra de Goscinny, o alçando como verdadeiro herdeiro dos escritores serialistas do século XIX, além de também se voltar a um dos aspectos menos conhecidos de sua carreira: A luta pelos direitos de exercício da profissão que vem contribuindo para o reconhecimento dos quadrinhos como uma arte em si. O site Raio Laser em parceria com o canal Eurocomics realizaram uma cobertura conjunta do festival, e mais detalhes sobre essa exposição podem ser vistos aqui.


Nessa perspectiva, segundo conclui Peeters, Um álbum de qualidade, seria acima de tudo uma boa história, ou seja, um substrato quase independente do meio em que vai fluir, capaz inclusive de suportar as mais diversas interpretações gráficas, como o que acontece na indústria de quadrinhos norte-americana de super-heróis, por exemplo, em que o “carro-chefe” da série do encapuzado ou da superequipe é quase sempre, o roteirista.
Tal princípio, aponta Peeters, conduz imperceptivelmente a uma espécie de instrumentalização do desenho. A história está completa: resta apenas executá-la, rejeitando cuidadosamente qualquer coisa que possa desviar de seu curso. Um roteiro “inescapável” que canaliza a narração para evitar qualquer fuga. Para um trabalho de imaginação, apenas a aspereza inexpugnável do concreto.
Neste modelo de produção a 4 mãos, o roteirista estando menos absorto na concretude da obra, seria preservado de uma certa “miopia” que acaba por afetar o artista que desenha suas próprias histórias: a de desenhar apenas aquilo que gosta, ou é mais cômodo. Como aponta Jean Michel Charlier:
Um ilustrador que desenha sua própria história sempre tenderá a demorar-se complacentemente nas cenas que gosta de desenhar e a evitar aquelas em que se sente menos à vontade. Jijé, por exemplo, adorava desenhar cavalos: quando se deparava com uma cena de cavalos, fazia dez páginas, atrasando sua entrega se necessário; e então, como sua história não havia progredido naquele tempo, ele se esforça para recuperar o tempo perdido da melhor maneira possível, em detrimento da narrativa (…) O roteirista não tem esse problema: ele tem, provavelmente, até na decupagem, um rigor que o desenhista não teria se intervisse.
Entrevista com Jean-Michel Charlier, In: Autour du scénario de Benoît Peeters (Org.)
Longe de fazer um elogio a essa divisão do trabalho, Peeters também reserva suas críticas a esse modelo que, muitas vezes, é bastante padronizado, seja nas escolhas de enquadramento ou mesmo no layout da página, desviando-se o mínimo possível da norma comum das convenções estabelecidas pela linguagem.
A especificidade encontrada
Se existe uma especificidade dos quadrinhos, é possível encontrá-la em um trabalho colaborativo entre roteirista e desenhista? Como ponto de partida, temos o dispositivo básico da colaboração, que é simples e bem conhecido: quando duas pessoas trabalham juntas na produção de uma história em quadrinhos, a primeira (o roteirista) concebe e conta uma história, enquanto a segunda (o desenhista) a traduz em imagens.
Peeters primeiro provoca o leitor para, em seguida, propor uma reflexão sobre o processo de colaboração, elencando quatro processos que, longe de esgotar as possibilidades, nos permite antes vislumbrar a complexidade do processo de criação colaborativa, além de trazer ótimas sugestões para quem trabalha ou pretende trabalhar em colaboração na produção de seus quadrinhos.
1º Desenhista como roteirista
Esse primeiro processo de colaboração fazer do desenhista uma espécie de roteirista. Já que são imagens a serem produzidas, por que não associar, desde o início, o desenho ao processo de narração?
Porque não escolher juntos um tema, uma situação promissora tanto no terreno gráfico quanto no enredo?
A partir destes questionamentos, Peeters elenca colaborações notórias por contar com a contribuição ativa do desenhista na construção do enredo, como no caso de Jean-Claude Mézières (desenho) e Pierre Christin (roteiro) em Valérian, ou de David Lloyd (desenho) e Alan Moore (roteiro) em V de Vingança.

2º Roteirista como desenhista
O segundo procedimento busca transformar o roteirista em uma espécie de desenhista. Peeters nota que, muito por conta do envolvimento do desenhista no roteiro, que os narradores de hoje estão cada vez mais apaixonados pelas questões visuais.
Neste caso, o roteirista pode primeiro, mesmo que sumariamente, esboçar no papel algumas sugestões enquadramento ou layout. Pode contribuir na busca de referências visuais para objetos e cenários por exemplo. Ou ainda, fazer uma pose para transmitir uma atitude ou um gesto de um personagem.
Segundo Peeters, tais intervenções podem aumentar gradualmente a consciência do roteirista sobre o considerável trabalho de encenação que uma história em quadrinhos representa. Desta forma, evita-se parcialmente o risco de desenvolver uma narrativa fundamentalmente literária em que a imagem seria apenas ornamental.

3º A frequência das trocas
Por mais simples que seja, o terceiro princípio é mais eficaz: trata-se de aumentar a frequência das trocas entre roteirista e desenhista. Em vez de se seguirem, como no cinema, uma fase autônoma de roteiro e um tempo de realização visual, pode-se de fato aproveitar a flexibilidade da história em quadrinhos para progredir gradualmente.
Em uma série, ou uma HQ de maior fôlego, por exemplo, escrever um capítulo somente depois que o anterior for desenhado permite levar em conta o que realmente foi feito e, portanto, aproveitar todos os elementos modificados ou adicionados.
Intervir em um quadro após o primeiro esboço, depois após a tinta, ou mesmo na hora de colorir, permite muitos reajustes: uma frase que parecia necessário na repartição escrita pode revelar-se inútil em vista de uma imagem particularmente legível; outras vezes, por outro lado, percebemos que algumas palavras viriam na hora certa para acentuar um quadro discreta na qual o alho poderia escorregar. Mas esses refinamentos estão longe de dizer respeito apenas à relação entre o texto e a imagem: pode tratar-se também de apagar uma cena, de dividir em duas uma ação planejada em uma imagem, de retificar um gesto, de corrigir um enquadramento, de prolongar um achado, etc.
Por mais preciso que seja, o roteiro fornece apenas uma pequena parte dos elementos que o desenho vai colocar, elementos que, se não tivermos cuidado, mudará profundamente o rumo da história: uma mudança de ponto de vista pode tornar uma ação incompreensível ou quebrar um efeito subsequente, enquanto um objeto acrescentado “para preencher a tapeçaria” pode, se visto a tempo, trazer uma ideia para uma nova cena. A escala dos planos, a espessura das linhas, a escolha das cores: nada disso tem a ver com a impressão produzida por uma história. O vaivém incessante entre o roteirista e o desenhista, por si só, nos permite medir o que realmente é contado pelo quadrinho.
Nesse tipo de colaboração intensa, pode haver elementos surgidos da troca que nenhum dos dois polos de criação poderiam conceber juntos, como revela Alan Moore a respeito de sua contribuição junto a David Lloyd em V de Vingança:
Havia elementos que surgiram da combinação de minhas palavras e imagens de David que nenhum de nós se lembrava de trazer para a história. Houve ressonâncias impressionantes que pareciam se inclinar para soluções mais ambiciosas do que qualquer um de nós estava disposto a aceitar quando se tratava de quadrinhos.
Entrevista com Alan Moore, In: Autour du scénario de Benoît Peeters (Org.)
4º A iniciativa das imagens
Para o último processo de colaboração, Peeters sugere que a ordem de intervenção de ambos os colaboradores seja invertida de tempos em tempos.
Pois não há dúvida de que uma iniciativa assim poderá conduzir um dia, por mais tímidas que sejam ainda estas primeiras experiências, a uma verdadeira renovação das relações narrativas entre o texto e desenho. É claro, em todo caso, que esse procedimento oferece uma colaboração bem ensaiada, às vezes ensaiada demais, uma chance concreta de se renovar.
É verdade que juntos, o roteirista que se preocupa apenas em contar uma boa história, e o desenhista que não se interessa por nada além de organizar belas imagens na página poderiam viver a colaboração da forma mais serena possível. Mas, para além da invenção do enredo e da escrita dos diálogos, ou de desenhos graficamente competentes, para aqueles que têm a ambição de tocar o cerne da especificidade da linguagem dos quadrinhos, o problema torna-se cada vez mais difícil, como se, ao aproximar-se do essencial, tanto o roteirista quanto o desenhista, medissem melhor tudo aquilo que ainda os separam dele.
Considerações finais – A escrita do outro
No desenvolvimento de uma história em quadrinhos, os dois parceiros não estão em pé de igualdade, conclui Peeters. Salvo exceções extremamente raras, o envolvimento físico do desenhista é muito maior. Dia após dia durante um ano, às vezes por dois anos ou mais, ele se vê imerso quase continuamente no universo do seu quadrinho. Este fato é indiscutível. Dito isto, duas conclusões conflitantes podem ser tiradas:
De acordo com alguns, incluindo Jean Michel Charlier (como vimos no trecho da entrevista acima), cada momento desse envolvimento na obra só poderia levar o desenhista a uma espécie de cegueira, consequência de sua falta de retrospectiva em relação ao projeto.
Segundo outros – entre os quais, o próprio Peeters se juntaria -, o roteirista deve sobretudo contar com o desenho de seu colaborador, sobretudo em aspectos ainda latentes desse projeto gráfico. Analista, em todos os sentidos do termo, o trabalho do desenhista deveria ser, em suma, extrair de um estilo e da concepção do espaço que ele implica, os primeiros materiais de suas construções narrativas.
sempre insuficiente – a primeira tarefa do roteirista seria, portanto, o que poderíamos chamar de escrita do outro, ou seja, o estabelecimento das condições que favorecerão o surgimento desses objetos misteriosos e frágeis: as imagens.
Com essa instigante ideia de “escrita do outro”, concluímos a série especial dentro da minha coluna “Vá com o Carmo” que se propôs a fazer uma leitura comentada de todos os capítulos de CASE, PLANCHE, RÉCIT: COMMENT LIRE UNE BANDE DESSINÉE, ou QUADRO, PÁGINA, NARRATIVA: COMO LER UMA HISTÓRIA EM QUADRINHOS, de Benoît Peeters, publicado originalmente em 1991 pela editora francesa Casterman.
Espero que tenham aproveitado a leitura até aqui. Na próxima, voltaremos a programação normal.
Obrigado por acompanhar!