[Com vocês] Dani Marino: Little Nemo, anacronismos e sequencialidade

Tão logo a campanha de financiamento para a publicação de Little Nemo (1905 – 1909, Ed. Figura, 2022 – tradução de Cesar Alcázar), de Winsor McCay, foi anunciada nas redes sociais, o burburinho em torno da publicação foi intenso tanto entre leitores, como entre artistas e pesquisadores de quadrinhos.

Por se tratar de uma obra de importância histórica não só para os quadrinhos, mas para outras áreas também (como artes, comunicação, história), é compreensível que as pessoas começassem a checar suas economias para tentarem adquirir a edição (considerando o aumento no valor da celulose e da tinta e o tamanho do material, não é uma obra acessível a todos – custa R$ 250). As 220 HQs (em formato de tiras de página inteira para o jornal The Herald) seriam publicadas em ordem cronológica e colorida pela primeira vez no Brasil.  Assim, em 236 páginas em tamanho 29,7 x 38 cm bem protegidas por uma capa dura, viajamos por Slumberland com o pequeno Nemo e seus amigos em aventuras oníricas e muito inusitadas que, embora pareçam inocentes e politicamente desinteressadas, revelam um contexto extremamente problemático onde o racismo é um elemento de grande parte das tiras.

Não à toa, os editores da Figura acertadamente enunciam esse racismo tanto no prefácio, quanto no posfácio de Érico Assis, que, aliás, aconselho a leitura com atenção porque o trabalho de pesquisa envolvido ali é primoroso. Não só isso, é por meio das considerações nesses textos que o leitor consegue se situar e entender de onde certos discursos encontrados ao longo das histórias vêm. No entanto, o nível de racismo nas HQs afetou muito minha leitura e apreciação, afinal, se em muitas das tiras o elemento cômico é racista, e racismo não tem absolutamente nada de engraçado, o riso se perde.

O pesquisador Elbert Agostinho, organizador do livro Negritudes, Poderes e Heroísmos (2021) e coordenador do Observatório Carioca de Quadrinhos, ao refletir sobre a presença do negro nas HQs, afirma que “tanto o personagem, quanto o espaço que ocupa, são frutos de uma mente com imaginários distorcidos acerca do negro na sociedade” (p. 142):

Observa-se que dentro do universo das histórias em quadrinhos, personagens negros sofrem uma opressão existencial. Os possíveis sentidos de sua presença provocam significados compartilhados, nos quais a linguagem opera um sistema representacional que induz, equivocadamente, o leitor a apreender estéticas negras defeituosas (HALL, 2009, citado por AGOSTINHO, 2021, p. 143)

Por mais que um leitor sensato entenda que se trate de um contexto diferente, usar a carta do anacronismo não deveria eximir ninguém do desconforto que é se deparar com as imagens e discursos apresentados ali. Digo isso porque esse argumento é frequentemente utilizado como forma de encerrar um debate que precisamos fazer, ou seja, não é “era assim mesmo, vida que segue, nada muda”.

A ideia de que certas produções e suas contribuições são mais relevantes do que o sofrimento que causam pode ser uma defesa que veremos para obras como Little Nemo. Isso não significa, de maneira alguma, que uma obra dessa importância não devesse ser lançada, mas que, ao ser publicada, é preciso que ela traga os apontamentos – necessários – que constam no prefácio e no posfácio da edição brasileira, sem tentar justificar o que é injustificável. Em um momento que há uma verdadeira crise humanitária envolvendo índios Yanomamis no Brasil, não é possível ignorar que frases como “vamos matar todos os índios” na voz de uma criança de 6 anos foram escritas por adultos que contribuíram para a perpetuação de uma cultura que até hoje assassina povos originários em diversos países, a exemplo do que fizeram os europeus,  que exploraram e destruíram povos originários e ainda construíram um mito do salvador branco com amplo suporte da indústria cultural.

Uma dessas análises foi proposta pelo teórico de quadrinhos Thierry Groensteen. Um dos mais importantes autores sobre o tema, ele buscou estabelecer uma nomenclatura própria para os elementos das HQs a partir de suas características mais específicas. Em O Sistema dos quadrinhos (Marsupial, 2015 – tradução de Érico Assis e Francisca Ysabelle Manriquez Reyes), Little Nemo aparece no capítulo 3 (p. 154) como uma referência para ilustrar o conceito de lugar/posição dentro de uma HQ ao tratar a questão da sequencialidade, tema que rende discussões intermináveis entre pesquisadores.

Os quadrinhos são frequentemente motivo de embates calorosos quando tentamos defini-los e Little Nemo é um exemplo bem curioso para pensarmos esses aspectos. Se hoje é ponto pacífico que existe uma cultura dos quadrinhos que, entre outras coisas, indicaria a ordem “lógica” para a leitura de uma sequência de quadros, em 1905, quando os quadrinhos ainda começavam a circular dentro de uma mídia de massa (jornal), Winsor McCay não estava tão certo disso. Então, as tiras contêm números que indicam a ordem em que devem ser lidas e até um dado período, havia a voz do narrador entre as tiras, fruto da tradição literária e de uma cultura que ainda não estava acostumada a ler imagens como lemos hoje. Nesse sentido, o que para o leitor atual pode parecer uma atitude um tanto rasteira do quadrinista, era na verdade um recurso que, aparentemente, visava educar as massas em uma nova forma de produção artística.

Porém, mesmo que o leitor não conhecesse a ordem narrativa de Little Nemo, Groensteen destaca que cada “prancha” semanal era um capítulo em si, podendo ser apreciada independentemente das demais, pois em todas elas o menino começa pegando no sono, vive uma aventura enquanto dorme e sempre acorda no último quadro. Essas séries, ainda que independentes, compõem uma narrativa cronológica e sequencial que começa com Morpheus querendo que Nemo vá fazer companhia à sua filha (a princesa) e segue com inúmeras aventuras até que o protagonista a encontre, se perca dela, volte ao palácio e assim por diante. Embora as tiras sejam previsíveis vez ou outra, a arte e os recursos gráficos têm pouco de previsível, ao diversificarem na medida que McCay parece ganhar confiança em relação ao seu trabalho a ponto de explorar novos enquadramentos, layouts e disposição dos elementos gráficos.

É justamente em relação ao último item que Groensteen recorre a Little Nemo para ilustrar a questão dos lugares que certos elementos ocupam nas narrativas. Para o teórico, certas quadros ocupam um lugar de privilégio nas narrativas, o que é determinado pelo entrelaçamento das séries contidas em uma HQ:

Um lugar é, portanto, um espaço ativo, sobredeterminado, um lugar onde uma série cruza com (ou sobrepõe-se a) uma sequência. Há posições privilegiadas naturalmente predispostas a se tornar lugares, sobretudo às que correspondem às posições inicial e terminal da história, ou dos capítulos que a compõem. (Assim, Little Nemo, folhetim no qual cada prancha semanal era um capítulo em si, os quadrinhos terminais constituem uma coleção notável de despertar do protagonista.) Mas há outros lugares que não coincidem com posições de privilégio; é o entrelaçamento que tem o efeito de lhes dar atenção particular e construí-los como lugares. (GROENSTEEN, 2015, p. 156)

Para além do que representa ter em mãos uma obra tão referenciada nos livros teóricos sobre quadrinhos, os maiores trunfos de Little Nemo residem na experiência lúdica e extremamente criativa que é poder explorar aspectos realmente psicodélicos dos sonhos em uma época em que a discussão sobre o significado dos sonhos ainda era bem perene e no fato de ter rendido tantas outras obras sobre o mesmo tema, como o próprio Sandman, de Neil Gaiman.

Mais de um século se passou desde o lançamento da primeira história do pequeno Nemo e ainda estamos muito longe de entender como diversos símbolos atuam em nossos sonhos para que consigamos lidar com a realidade. Por isso, independentemente das possíveis analises que essa obra possa suscitar, se ela nos garantir belas imagens enquanto dormimos, já vale a leitura.

Às vezes você acorda. Às vezes, a queda mata você. E às vezes, quando você cai, você voa. – Neil Gaiman


por Dani Marino
}Especialista em quadrinhos e questões de gênero. Colaboradora do site Mina de HQ. Mestre em Comunicação e doutoranda em ciência da informação pela ECA/USP. Integrante da ASPAS – Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial , do observatório de quadrinhos da ECA/USP e do grupo de pesquisa em teoria e crítica de quadrinhos da Universidade de Santa Maria.{

Publicado por lielson

Francisco Beltrão (1980) - Curitiba (2000) - São Paulo (2011) - Salvador (2017) - São Gonçalo (2018) - Santa Maria (2019).

Um comentário em “[Com vocês] Dani Marino: Little Nemo, anacronismos e sequencialidade

  1. Dani, excelente análise. No último ano graças aos estudos no Narrativas Periféricas comecei mais ainda a apreciar certas obras pelo aspecto histórico e/ou narrativo, no quesito de ser algo que influenciou fortemente autores futuros. Porém incomoda muito tantos títulos seminais, principalmente do ocidente, em que o racismo está ali enraizado nos quadrinistas e qualquer cultura não caucasiana é retratada com deboche. Isso fortalece minha busca por pioneiros dentro dessas “minorias”, para que os clássicos dos quadrinhos (ao menos na minha estante) não sejam apenas os que já são amplamente analisados…

    Little Nemo da Figura está aqui na minha mesa de trabalho para eventuais consultas pros próximos quadrinhos, mas realmente é um grande exercício passar por algumas páginas mega racistas…

    Curtido por 1 pessoa

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