[Com vocês] Luísa Monteiro: Damasco não é uma fruta

O texto que vem abaixo não foi encomenda, juro! Luísa Monteiro, nossa colega de grupo de pesquisa, escreve sobre o livro do balbúrder Lielson Zeni com o balbúrder eventual Alexandre Lourenço. Com vocês, o texto da Luísa.

Por aqui, Damasco é uma história em quadrinhos. A princípio, não é comestível. Ao que parece, o título não tem nada a ver com a fruta, a não ser pela cor amarelo-alaranjado e pela coincidência entre os significantes. Dela e da Capital da Síria. As três: Damasco. Ler a palavra é ler os três, mas a consequência não é a que se esperaria ao provar a fruta, doce e alaranjada. Não, é uma leitura que, se comida, acaba sendo um tanto seca, um tanto amarga. É o gosto da leitura, um pouco menos nos momentos em que a cor amarela irrompe entre o preto e branco que predomina na história.

A referência bíblica é indicada logo na abertura da HQ: Saulo em Damasco, o Saulo bíblico. Assim como Damasco não é uma fruta (mas é), Saulo não é bíblico (embora seja). Ele é também um “analista assistente de projetos estratégicos, morador de São Paulo, namorado de Raquel e ex-integrante frustrado de uma banda de rock. Indícios de uma atualização que não dispensa a intertextualidade bíblica. De novo, ler um é ler os dois. Saulo é e não é o nome que carrega.

Damasco é retomada em uma conversa na copa do escritório de Saulo, ainda nas primeiras sequências da história. “Damasco está em ruínas”. A frase é entreouvida pelo protagonista, que escuta cotidianamente às conversas sem trocar uma palavra com os colegas. Damasco na guerra, em ruínas, é um tema que se espectraliza na narrativa, e chega a Saulo como um fantasma trazido pelas informações que indiretamente se dirigem a ele – no trabalho, na TV, nas conversas etc.

Damasco está repleta de fantasma. Não a cidade, nem a fruta – aqui Damasco é uma história em quadrinhos. É uma história repleta de fantasmas. Em último caso, é o que o protagonista Saulo deseja: tornar-se espectro, fantasma. Talvez o queira justamente por ser assombrado por vários: o fantasma do fracasso, o fantasma da solidão, o fantasma do capitalismo tardio, o fantasma do vazio neoliberal. O fantasma da falta?

Talvez por isso a minha primeira impressão de leitura foi a de acompanhar os bastidores de um ghosting. Era inclusive a ideia inicial do meu título: os bastidores do ghosting. Acompanhar a trajetória de Saulo em sua relação com Raquel, com os amigos, com o trabalho é, analogamente, acompanhar os bastidores dessa partida premeditada, meticulosamente calculada, que recusa o conflito e quer se dar sem deixar vestígios. É covarde, é claro, como aponta a sua companheira, Raquel. Ou ex? Não se sabe. Sem o conflito, esse encerramento não vem. Espectros não dizem, não rompem vínculos. Não se comunicam, não se inserem na linguagem. Desaparecem para permanecer, sugerem uma promessa de reaparição. E dentro do mito da masculinidade heroica que é negado a Saulo, espectrar-se é o mais próximo desse heroísmo que ele consegue formular.

“Como seria virar personagem? Virar um homem sem alma num livro, solto entre as leituras, livre, sem nada, ser só eu mesmo.” A coragem de Saulo – se existe – é a de tentar responder a essa pergunta. Funciona? Existe espaço para a fuga como um feito? Como um lampejo de ser notado? Se Saulo é capaz de frieza de covardemente fantasmar-se, o seu próprio tempo, a sua cidade, responde a esse ato com uma indiferença acinzentada, que se nega a dar aplausos, testemunhas ou respostas. Nada lhe resta além de um “agora bruto” com quadros vazios, sem fundo, apenas uma camisa amarela como memória de único encontro que parecia ter cor.

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Damasco foi publicado pela editora Brasa, em 2023

Publicado por mckamiquase

Maria Clara Ramos Carneiro on ResearchGate https://orcid.org/0000-0003-2332-1109

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