Sonhei que andava por dunas e que o sol refletia no chão e me doía os olhos. Caminhei até encontrar Alejandro Jodorowsky; ele não me falou nada, mas com as mãos pediu que eu o seguisse. Passamos por AREIA, areia, arena céu e areia até um lago raso. Jodorowsky entrou e, mesmo com 80 anos, apoiou-se nas mãos e permaneceu de ponta-cabeça. Pude ver ele refletido na água. Diante de mim, ele e seu reflexo se misturavam, um era luminoso, outro era negro. Sorriam consoantes e um Jodorowsky se entrelaçou no outro e explodiu em luz.
Desse clarão surgiu um livro que se abriu (pelo vento? não sei) e eu caí dentro do livro, mergulhei em páginas líquidas “Eu não sei nadar! Ayúdame, Jodorowsky!”.
Eu caí no Incal, o gibi. Sumiram as águas e eu estava no Beco do Suicídio, com muita gente caindo comigo (basta que um salte e vários insatisfeitos também se jogam). Os aristos mijam e atiram, e sempre erram. A queda, ao contrário do gibi, não acabava no lago de ácido; ela não acabava. Quando entendi isso, conversei com aqueles que caíam:
Moebius fala de como mudou a direção de suas HQs depois que passou a meditar regularmente (e por isso parou de matar protagonista pra resolver histórias). Essa nova perspectiva de Moebius (não mais Gyr, não Jean Giroud) é propícia para Jodorowsky PÔR AS CARTAS NA MESA.
Outros dois roteiristas de HQ usam o tarô pra compor suas histórias: Alan Moore e Grant Morrison. Jodorowsky diz que lê o presente, pois é charlatanismo ler o futuro nas cartas. Ele usa as instruções da magia como elevação da alma de seus leitores, não apenas como uma forma. Pense em A MONTANHA SAGRADA (relacionem esse filme com Homem-Animal, do Morrison), e obviamente com o Incal, em que os arcanos maiores estão pela HQ toda.
O peso da telemídia, as notícias espetaculosas e rasas, tudo pela audiência (esse elemento é mais forte em Antes do Incal), faz pensar se Frank Miller não leu O incal, porque a apropriação do jornalismo pelo poder econômico, seu desligamento da tentativa de imparcialidade, o barateamento da notícia que descamba pra violência e sexo maquinal são temas também em Cavaleiro das trevas. Em Incal, a mídia não é só composição de cenário. A transmissão ao vivo e o alcance da notícia é elemento decisivo na HQ. Outro potencial leitor da obra deve ser Warren Ellis, pois Transmetropolitan parece se referir a Incal em vários momentos.
Reli o final de Incal cinco vezes e chorei em todas.
Alejandro sacou que não tem diferença entre o um e o todo, tá ligado? Porque o todo se compõe vários “cada um”. Ao falar de si, tipo no DANÇA DA REALIDADE ou quando ele aparece como poeta em A CASTA DOS METABARÕES V.3, ele tá meio que falando que ele é um caminho pra se chegar ao universal e que as memórias dele e tal podem ser tipo um bem comum. Mas o lance é que qualquer também pode, tá ligado?
A associação Jodorowsky-Moebius começou quando eles tentaram fazer O FILME DUNA, mas no fim resultou em Incal. Várias cenas pensadas pro filme estão na série e também em Antes de incal e A casta dos metabarões. De buena? Melhor assim.
Eu tô em cores chapadas? E tu que tá nessas “NOVAS CORES MODERNOSAS COM DEGRADÊ TOSCO”? Quase não consigo falar contigo, meu chapa!
É como se o roteiro de Incal desse pro Moebius a bússola que ele sempre buscou em seu próprio trabalho. Ele mesmo comenta (e aponta como falha) que frequentemente resolve histórias matando o protagonista. Aliás, muito doido o processo deles, né? O Jodorowsky contava a trama e o Moebius esboçava num caderno. Às vezes ele perguntava algo pro Jodô ou apontava coisas que não faziam sentido. Mas aposto que depois rolou um roteiro mais ~canônico~ pra cada uma das seis partes.
O Incal é mundo muito bem acabado, que começa com uma proposta surrealista (ou panica, vai), surgida em um sonho do Jodô, segue a JORNADA DO HERÓI do herói do Joseph Campbell e se espalha em rede na cabeça do leitor. Quer dizer, na minha cabeça.
John Difool é o protagonista do Incal naquelas, né? A história (cíclica, se liga) começa e termina com ele, mas todo o caminho ele só é vítima dos acontecimentos. Desde o começo in media res (termo latino que pode ser traduzido como “no meio da foda”), ele reage. Só no final, na última página, ele age. Isso é lindo e esculhamba manual de roteiro, que diz que o protagonista tem de agir, não reagir. Mas acho que o Jodô sabe mais que esses caras. Ele leu as tragédias gregas, ele lê o tarô. Os arcanos maiores que estruturam o Incal, quando aparecem em maior quantidade, mostram que o destino se impôs.
Tem uma mistureba de conceitos bem do tipinho do Jodorowsky em Incal. Tu viu as FABULAS PANICAS? Ou o MOVIMENTO PÂNICO? É de Pan, o deus e tal… pois então, acho tudo muito sudaco isso de processar tudo junto: o Incal encaminha Difool pra iluminação e o final pode ser lido como renascimento e a necessidade de despertar; tem o lance do tarô; tem o policial noir; tem a ficção científica; tem as referências literárias e de cultura pop… Incal é um mundo mesmo. Dava um puta cenário de RPG.
A ideia do herói inadequado e escolhido pela loteria cósmica de Incal é a mesma de sempre, embora seja um bom truque, porque, afinal, um escolhido nunca é um qualquer.
Sabe que nunca saquei direito a avezinha do John Difool? Por que que ela tá na história? Parece alívio cômico, mas tem mais ali. Dipo salva ele várias vezes e também acabava com a ilusão do John quando quer ser nobre (e ele não é). Ele protege e tem um amor fraternal por Difool. Mas acho que tem mais coisa, só não sei bem o que é…
Moebius e Jodorowsky conseguiram trabalhar juntos porque estavam ambos abertos a explorar o seu inconsciente, a deixar o caos bagunçar a estrutura e imprimir nisso um cheiro de realidade. Pense em Os Olhos do Gato (aliás, escreva sobre esse gibi!), Garras de Anjo e Incal. Sem falar em toda a presença de incesto, filho que precisa vencer o pai/mãe e vários Freud explica.”
Jodorowsky é um fanfarrão, um mentiroso! Um provocadorzinho que interpreta a si mesmo… melhor que interpreta alguém que pensamos ser ele. Te lembra, né? Ele é ator e mímico. E titereteiro! Viu SANTA SANGRE? Ele manipula seus fãs, usa os braços deles. É tudo voltado para si mesmo, ele celebra o eu e canta a si mesmo.
A junção de elementos clássicos, tipo jornada do herói com um processo aberto entre Moebius-Jodô, com ambos despertos ao subconsciente só poderia dar em Incal. Ou melhor, de outro jeito não daria em Incal.
Tema comum em Jodorowsky são os aleijados, que estranhamente não aparecem em Incal. Todos os filmes têm eles de alguma maneira. As amputações são essenciais em A casta dos metabarões; por exemplo. É como se fosse preciso entregar parte de si para se obter a plenitude, criando um paradoxo. Em Incal, a plenitude surge de uma comunhão plena dos personagens entre si e com o universo.
As mutações de John Difool em Incal seguem os arcanos maiores do tarô. Ele começa como o tolo e segue sua metamorfose. A morte marca uma mudança importante. Mas o mais interessante dessa incongruência de caráter e ações do protagonista, que é justamente isso que torna ele um personagem muito humanizado, essa ausência de um padrão coerente de ações. Louco, né?
A base de detetive noir tá ali, né? O Jodô fala do FILME KISS ME DEADLY como referência, mas com um final construtor em Incal, menos um apocalipse e mais um eterno retorno, ciclo em vez de linearidade. O fim do mundo não é ruim no Incal, nem em A casta dos metabarões.
Os desenhos de Moebius, com sua regularidade de composição, vão se explodindo durante o Incal até chegar às páginas finais, que são mais dinâmicas. UMA DELAS O MOORE USOU/COPIOU/HOMENAGEOU em Majestic.
Fando Y Lis, PRIMEIRO LONGA-METRAGEM DIRIGIDO pelo Jodorowsky (ele assinava Alexandro na época), é Beckett no osso, hein? LA CRAVATE, o curta, tem algo que me cheira a As cabeças trocadas, do Thomas Mann; A casta dos metabarões é uma ode às tragédias gregas (COM HYBRIS e tudo – fica a provocação: doutorado), em um registro de épico, manchado de lírico e cômico aqui e ali. Não é uma HQ de leitor de gibi, é de um autor que passeia por diferentes registros e lhes dá o mesmo peso.
Tu entendeu? Tu sacou? A solução da bagaça não é tipo uma guerra, mas é quando todos dormem e entram em contato com sua mente desperta no sonho! Difool não dorme e não se sacrifica (é a porra do herói que não está disposto a sofrer), por isso volta a cair, sem se lembrar de que é um desperto, de que é um Buda. Para os budistas, todo mundo é Buda, só que não se ligou disso, tipo, não se ligou mesmo. E é justamente essa falta de perceber que fode o Difool. Não ter lucidez numa luta da luz com a escuridão é estar mal preparado, é ter que voltar tudo de novo.
Antes que pudesse falar com mais alguém, o chão se aproximou e eu levei a perna a frente pra dar um passo e, numa tentativa ridícula, evitar a queda. Acordei chutando o lençol, sendo esse o passo que me tirou do sonho e me trouxe pra cá. Pensei que deveria tatuar o Incal e achei ter ouvido um sussurro antes de voltar a dormir. Era algo como “lembre-se”, “lembre-se”.
depois deste texto quero ler, ver esta “coisa toda”, massa Lielson!
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Lê, cara. Vale muito a pena!
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