Vim para falar da minha lista do Grampo 2019 e acabei deslizando umas ideias aqui sobre listas de modo geral.
[…] a lista é a própria marca dos primórdios de uma civilização de escrita. Mas […] a lista está para o lado da simples grafia, do registro, não do estilo. Ela serve a anotar dados […] – nada mais. E, no entanto, desde o Antigo Testamento ou a Ilíada e a Odisseia, a literatura, no sentido mais amplo do termo, regorjeia listas.” (De Haut en Bas, Bernard Sève, p. 85)
Por aqui, por gentileza.
Uma das questões da lista é de qual recorte ela parte e quais são os critérios para esse recorte. Quando se diz “lista de quadrinhos publicados no Brasil em 2018”, só aí existem 3 circunscrições para a possibilidade de listar (são quadrinhos e não derivados de laranja; são publicados no Brasil e não em outro lugar; e no intervalo de tempo do ano de 2018).
Aí entram os critérios até óbvios, como o que define 2018 (com data de lançamento entre 1 de janeiro e 31 de dezembro). E, ao mesmo tempo, há aberturas: não há delimitação de ser impresso em livro, publicado em jornal ou lido na internet, por exemplo.
“Típica do manifesto, das poéticas de vanguarda por ser um ‘gênero segregador e de proclamação’, a lista permite uma repartição concentrada de ideias e de pessoas rejeitadas ou aprovadas.” (Liste et effet liste en littérature, Johanne Mohs, p. 140)
A brincadeira fica mais legal com algumas restrições (ou mesmo só é possível diante de limites),daí que a lista do Grampo só pode ter 10, por isso, camarada, você vai ter de escolher entre tudo que saiu no Brasil. E não pode pôr na sua lista nada em que você trabalhou também, afinal, a gente sempre tem tendência a valorizar aquilo em que deposita energia e esforço, o que dá aquela nubladinha na escolha.
Há quem defenda que uma lista legítima de quadrinhos brasileiros só poderia surgir se tudo o que foi lançado no país fosse lido, medido, comparado e aí, então, listado.
Discordo da proposição em si e já me explico. E tem outros discordantes além de euzinho, e começo pelo tempo inefável de todos nós.
(esse é o momento que polvilho um pouco de números aqui, o que pode ser monótono pra alguns, mas peço sua bravura e benevolência para seguir mais um pouco comigo)
De acordo com o sensacional site colaborativo Guia dos Quadrinhos (fonte cavalar de informação para leitores e divulgação para autores), no ano de 2018 foram lançados 2.141 quadrinhos no Brasil, entre revistas e álbuns, entre editoras e independentes. Isso a se considerar o ano de 365 dias, nos entrega uma média de leitura de quase 6 quadrinhos por dia. Desconta-se 8 horas de sono, você precisaria ler uma revista/livro a cada 2h40, mais ou menos. Até parece possível a se considerar quadrinhos de super-herói de 100 páginas e começa a ficar mais difícil se pensar na edição completa do Corvo Edição Definitiva ou A Arte de Charlies Hock Chye (Darkside Books e Pipoca e Nanquim, respectivamente, publicados em 2018). Complica ainda mais se você tiver qualquer interesse em outra coisa na vida, tipo ir ao cinema, desenhar, ler outros tipos de texto, cuidar da horta, conversar com pessoas, brincar com gatos.
Tem até quem trabalhe pra pagar as contas e não possa dedicar todo esse tempo aí à leitura.
O segundo fator discordante é o seu bolso.
Uma anedota exemplar: listinha com 50 lançamentos de 2019, entre revistas mensais mais baratas, livros onerosos, e algum desconto aplicado, já passa dos R$ 2.300,00.
Imaginando o multimilionário ideal pra esse cenário (embora sempre ache os multimilionários muito longe do ideal – malzaê, tio Patinhas), que tenha o ócio e a liquidez necessária pro empreendimento de ler tudo que saiu no Brasil, vai ter que segurar a bacurinha e viajar pouco, importar poucos quadrinhos, ou seja, praticamente apenas ler os tais quadrinhos lançados no Brasil. Sinceramente, pleibói hipotético: nenhuma lista vale essa monastia.
Antes de chegar a minhas considerações, quero ressalvar algumas coisas: o Guia dos Quadrinhos não tem em seu banco de dados todos os quadrinhos lançados no país em 2018. Dois exemplos: o lindo Juras, da Julia Balthazar e o delicado Hibernáculo, da Amanda Paschoal Miranda, não estão lá. Ou seja, é difícil catalogar todos os independentes (o heroico Thiago Borges, em seu O Quadro e o Risco, aponta em torno de 140 lançamentos no FIQ e 240 na CCXP, grande parte deles independentes [e tem ainda feira Plana, Dente, Parada Gráfica, Bienal de Quadrinhos de Curitiba, Des.Gráfica, Miolos, entre muitas outras]). O Guia também não se propõe a registrar as tiras de jornal ou os Instagram e Facebook e blogs e sites de quadrinhos. Então, minha boa gente, a realidade é ainda mais entupida de publicações de quadrinhos do que conseguimos estimar.
Lembra que falei de critérios para listas lá em cima? Pois é, meu primeiro critério é assumir que minha lista vai ser direcionada para os quadrinhos que tenho interesse e não todo o conjunto dos quadrinhos lançados. Dessa forma, me abono de ler super-heróis – pois faz algum tempo que pararam de fazer sentido pra mim -, de ler os infantis, bem como mangás do naipe One Piece. Também tem autores que eu sei que não gosto do trabalho e posso passar sem problemas, como aquela dupla da série Verões Felizes (Sesi-SP, 2016. 2017, 2018).
“Existe mais de uma maneira de não ler, das quais a mais radical é não abrir nenhum livro. Tal abstenção completa diz respeito, para todo leitor, tão assíduo quanto ele possa ser neste exercício, à quase totalidade das publicações, e, portanto, constitui nosso modo principal de relação com o escrito. Com efeito, não se pode esquecer que mesmo um grande leitor só tem acesso a uma proporção ínfima dos livros existentes.” (Como Falar dos Livros que Não Lemos?, Pierre Bayard, p. 23)
Meu interesse segue por caminhos diferentes de outras pessoas que gostam de fazer essas listas (e não sou o único; aliás, cada um dos listantes tem seu perfil), o que acho muito massa porque ajuda a pintar um panorama da cena a partir de diversos pontos de vista. Defendo que o conjunto das impressões é muito mais valioso que cada uma delas separadas.
Acho irrelevante ler todos ou quase todos os quadrinhos lançados no país pra fazer minha lista do Grampo. É uma lista de quadrinhos que me interessam dentro de uma no com diversos outros, não uma gincana de quem acumula mais páginas lidas. Acho preferível ler e reler algumas obras que me tocam como Incal (Devir, 2012), Aqui (Quadrinhos na Cia, 2017), Angola Janga (Veneta, 2017), Sem Dó (todavia, 2017), do que evitar releitura pra dar conta de cronograma. Meta, orçamento, média: isso já parece administração de empresa, e não vontade de ler quadrinhos.
Eu sigo lendo os quadrinhos porque gosto do que li antes e quero reencontrar mais vezes a satisfação que Um Homem que Passeia (Devir, 2017) e Calvin & Haroldo me entregam. Daí, naturalmente, leio muito, mas sequer chego perto de dar conta dos 2 mil lançados pro aqui.
“Nunca lemos de um livro senão uma parte mais ou menos grande, e mesmo essa parte está condenado, em um prazo mais ou menos longo, ao desaparecimento. Assim, mais do que com livros, nós nos entretemos, a nós mesmos e com os outros, com lembranças aproximativas, remanejadas em função das circunstâncias do tempo presente.” (Como Falar dos Livros que Não Lemos?, Pierre Bayard, p. 70)
Também é falsa a ideia que você acaba todo um livro. Sempre se pula uma palavra, se lê enquanto outra coisa passa pela cabeça. E depois de ler, a memória capitula, ainda bem; por isso, o sabor do novo encontro na releitura. Eu fico com as minhas parciais, você com as suas, e juntos montamos o sistema de realidade. Cada um dos elementos em um conjunto provoca o rearranjo todos os demais e mesmo assim ele ainda é um só, ele só pode ser todo, se junto.
Tanto a memória se constrói por associação, como as sinapses pelo pareamento dos neurônios; esquece o gênio original romântico arrogante e vem pra cá com todo mundo. Sei que gente pode ser difícil, mas não é uma pessoa que vai dar a melhor posição da cena de quadrinhos do Brasil, e sim, o entendimento e as brechas entre as posições e as sinapses disponíveis para unir essas unidades. O conhecimento compartilhado como rede e colaboração (tipo, o Guia dos Quadrinhos) é o que mais me interessa.
Penso que o simples fato de fazer listas é suficientemente significativo para dizer coisas […]. Ora, uma página de uma história em quadrinhos é um pouquinho como uma lista, são quadros, desenhos, uns ao lado dos outros; logo, vai bem com essa forma de registrar, a história em quadrinhos cai bem com a enumeração. E depois, é possível fazer páginas com quadros, e fazer pequenas imagens umas ao lado das outras fora dos quadros, há muitas maneiras de representações possíveis, como as onomatopeias… (Johen Gerner, em entrevista para Maria Clara Carneiro)
E volto outro dia, prometo que logo, daí só pra contar da minha lista do Grampo.
Faço eco as suas palavras, todavia, creio que você deveria cuidar melhor daqueles Miracleman.
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