Alexandre Lourenço (Romero, para os íntimos) é o autor do blog Robô Esmaga, que ganhou uma edição impressa em 2015 pela editora JBC, e publicou recentemente Você é Um Babaca, Bernardo, gibi que já caiu (e ainda vai cair) na lista de Melhores Gibis de 2016 de muita gente (na minha, inclusive).
O Alexandre disponibilizou um tempo pra trocar uma ideia sobre o processo de criação do gibi e outras coisinhas mais. Dá um bizu:
Paulo- Qual foi o tempo de produção de Bernardo? Desde a concepção até o último desenho?
Alexandre – A ideia do Bernardo veio a partir de uma tira que eu criei pro Robô (Esmaga) chamada Segunda. Não que eu tivesse feito a tira com alguma pretensão, mas gostei da metáfora da cabeça e do corpo separados. Começou com essa tira, mas só pensei em fazer um quadrinho longo com isso no início de 2015. Desenvolvi a história e os personagens. Comecei os desenhos no início de 2016 e terminei tudo em agosto. Já tinha desenhado umas cinco ou seis páginas antes, enquanto desenvolvia a história.
Paulo – Você sabia aonde queria chegar, como ia concluir a história, ou foi um processo de escrever pra ver no que dava?
Alexandre – Um pouco sim. Eu sabia que queria fazer uma história sobre não realizar as coisas. Tinha um conceito geral da coisa e da menina que ia aparecer. Mas não sabia exatamente onde isso iria acabar e desenvolvi a personagem feminina muito mais do que o esperado. Mudei também o que a cabeça ia fazer enquanto não estivesse junto ao corpo. Tinha essa ideia vaga do que ia acontecer, mas bolei muita coisa enquanto fazia a história.
Paulo- Quais os planos originais pra o que a cabeça faria longe do corpo?
Alexandre – Então, desde o início, eu pensei na casa no campo como último lugar onde a cabeça estaria. O que imaginei antes era em mostrar uma espécie de desenvolvimento desse desejo. Tipo, mostrar a cabeça em alguns clichês dos filmes e livros de aventura. Uma cabeça pirata, uma meio Indiana Jones, depois numa aventura espacial… coisas do tipo. Também cogitei deixar a cabeça pasear por lugares comuns. Mostraria ela em praças, ruas, shoppings, cinema, em lugares assim, até que, em algum momento, encontraria a casa de campo. Mas isso meio que nunca se firmou na minha cabeça. Decidi então só mostrar que ela ia embora, e revelar onde estava mais pro final do quadrinho.
Paulo – Então, se a ideia não tinha “se firmado na sua cabeça”, não foi uma escolha difícil substitui-la, acredito.
Alexandre – Não foi. Nem acho que tenha sido uma substituição. Porque nunca virou parte da história. Tive algumas ideias que não deram certo, que não consegui resolver, acho, então, ficaram de fora.
Paulo- A JBC publicou Robô Esmaga no ano passado, que compila várias tiras que você postava no blog . Já no Bernardo houve o envolvimento de uma editora, a Mino. Como foi a experiência de trabalhar com uma editora?
Alexandre – Existiu um trabalho editorial no livro do Robô que foi o de compilar as tiras, a ordem que elas seriam publicadas, não teve um impacto direto no quadrinho em si. Com o Bernardo eu tive essa experiência nova, desse olhar externo, que gostei muito. Começou quando eu apresentei um texto pra Mino antes de começar a produzir o quadrinho, no qual eu expliquei o que aconteceria na história. Eles leram, deram algumas ideias e conversamos sobre o que seria melhor pra história. Ao produzir as páginas, colocava os arquivos em um Google Drive e eles olhavam e comentavam, mas sem muita interferência. Alguns erros de continuidade, coisas desse tipo. Depois que terminei as páginas, sentamos juntos e começamos a revisar tudo, pensar na sequência, refazer uns desenhos, cortar umas páginas, adicionar outras. Gostei muito desse processo, porque depois de meses desenhando a mesma coisa, acho que não conseguia ver mais nada. Achei bem importante o papel do editora.
Paulo – A edição tem um formato pouco comum pra uma HQ (quadrado, ao invés de retangular vertical ou horizontal) e que funciona muito bem com a narrativa. Esse formato ajudou a guiar a narrativa da história? Você já tinha um formato em mente enquanto produzia?
Alexandre – Sim, o formato quadrado do livro surgiu junto com a ideia da sequência inicial das repetições. Fora uma página dupla, acho, todas as outras são baseadas na grade de 9 quadros por página que acontece na sequência inicial. E, já que ia seguir esse padrão, achei legal usar quadros do mesmo tamanho (altura e largura) pra mostrar a vida repetida do personagem.
Paulo- Uma semelhança que percebi num elemento entre Bernardo e algumas tiras do Robô Esmaga é o enclausuramento e a alienação do trabalho, em especial em grandes empresas, onde todos estão divididos em baias. É impressão minha isso causa impacto em você?
Alexandre – Sim. Eu trabalhei em uma multinacional por pouco mais de 10 anos. Nunca gostei de estar lá, mas a grana era boa e era cômodo. Isso te cobra um preço. O jeito que eu consegui trabalhar essa questão foi fazer quadrinhos e reclamar da vida pra quem estava do meu lado. Eu vejo um monte de quadrinhos em que o (a) protagonista é um(a) escritor(a), programador(a), designer, ilustrador(a) ou alguma coisa do tipo porque quem faz quadrinhos geralmente precisa de outra fonte de renda. Eu trabalhava em escritório. Acho normal essa ser a profissão dos meus protagonistas.
Paulo – Você conhece Here, do Richard Mcguire? É um gibi bem diferente de Bernardo, mas que também desconstrói a narrativa e o tempo tradicional da HQ, o que, na minha opinião, é o grande impacto da sua HQ. Achei que poderia ter te influenciado no modo de contar a história. Você chegou a ler?
Alexandre – Eu conheço, mas nunca li. Eu vi alguma entrevista do Chris Ware falando do Here, uma primeira versão mais curta da história que foi publicado na Raw (ou algum outro lugar, se não estou enganado). Li umas páginas na internet e gostei muito da sacada do mesmo espaço em tempos diferentes, mas não acho que tenha sido uma influência direta pro Bernardo. Foi uma influência como várias outras coisas com as quais entro em contato, mas não li e tive vontade de fazer algo do tipo. A ideia da sequência inicial apareceu sei lá de onde. Eu pensei em contar a rotina dele de forma tradicional, linear. Então, um dia, pensei em como seria interessante mostrar uma rotina na mesma página. Quadros muito parecidos, mas com diferenças significativas. Achei que isso representaria a rotina de uma forma nova.
Paulo – Uma vez, numa mesa que mediei com você e outros quadrinistas, você disse que desenha o que consegue desenhar. Há uma sugestão de limitação nessa declaração, uma auto-consciência de que, talvez, você não “consiga” desenhar certas situações, cenários, ou expressar o que deseja do jeito que pretende. Essa ideia te guia na hora de escrever uma história? Por exemplo, já chegou a pensar em algo como “Poxa, seria ótimo colocar isso no gibi, mas não sei desenhar tal coisa, vou ter que bolar outra saída”. ?
Alexandre – Acho que sempre. Eu não escrevo roteiro da forma tradicional. Acho que já imagino a maneira como aquele momento vai estar no papel. E construo isso levando em conta a minha capacidade como artista. Não penso demais no que poderia ter sido, penso em como escrever pra mim, como desenhista. Em parte, essa é a diferença de fazer quadrinhos sozinho e desenhar quadrinhos roteirizados por outros. Não sei se isso é comum, mas eu crio levo isso em consideração. Quando eu pego o roteiro de outra pessoa que não tem ideia do que eu posso ou não fazer, percebo um monte de coisas que deixo pra trás.
Paulo – O curioso é que, mesmo com essa ideia que você tem da sua capacidade, o seu traço, intencionalmente ou não, é extremamente estilizado, incomum e não te impediu de fazer gibis ótimos. Inclusive, em Bernardo, você muda bastante o seu traço pra mostrar duas cenas de dois filmes, Viagem a Darjeeling e Onde os Fracos Não Têm Vez . Especialmente no caso de Darjeeling, os personagens/atores são imediatamente identificados. Como foi trocar o estilo de desenho pra fazer essas imagens? Foi mais fácil ou mais difícil do que imaginou? Você gostou do resultado?
Alexandre – Então, pra desenhar a cena do Darjeeling, usei o método do desenhista limitado e desenhei a partir de uma foto que usei como referência. Escolhi aquele momento porque achei que tinha a ver com o personagem. O resultado é um pouco estranho pra mim. De vez em quando, parece que estraga um pouco o andamento do quadrinho porque quebra a unidade narrativa. Usei brushes diferentes pra tentar efeitos de cores novos pra mim. No resto do quadrinho, uso cores chapadas e um pouco de sombra. Nos dois momentos eu tento coisas diferentes com a cor. Acho que a cena do drive-in funciona melhor, acho que o quadro conversa melhor com o quadrinho. Na parte do cinema, ele fica lá, desajeitado. Chama atenção mais do que devia.
Paulo – Tem lido, visto algum filme ou ouvido alguma música que valha mencionar, algo de destaque?
Alexandre – O melhor quadrinho que li em muito tempo foi o Talco de Vidro, do Marcello Quintanilha. Caraca! Achei muito muito bom! Vocês, Balburdianos, já falaram dele… Então… Tenho lido muito o Gipi, um cartunista italiano, que lançou recentemente Unastoria e Terra Dei Figli, estou gostando muito. Tô lendo Come Prima, do Alfred, que tem um desenho muito foda. Além disso, gostei muito do Maia, do Denny Chang. Fora isso, adoro Mr. Robot.
Paulo. Maia é ótimo. E já tem planos pra um novo quadrinho?
Alexandre – Estou trabalhando na minha próxima narrativa longa. Tá bem no início ainda, mas, pelo que parece, vai ser uma história familiar. Uma família que não se fala, que não tem muito contato, mas se reúne quando um dos membros está prestes a morrer. Não tenho muito mais que isso sobre a história. Mas to trabalhando ela na minha cabeça. Além disso, quero voltar a publicar no blog do Robô com mais regularidade. Já tenho algum material que falta desenhar pra colocar lá.
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