Em 2017 teve a primeira premiação para a categoria História em Quadrinhos no Jabuti, um dos mais importantes prêmios do mercado livreiro brasileiro. Falamos um pouco de como isso aconteceu, conversamos com os jurados do prêmio e comentamos os livros da lista final.
O Jabuti é uma premiação organizada anualmente pela Câmara Brasileira do Livro (CBL), desde 1959. Diversas categorias já entraram e saíram da premiação, que de tempos em tempos revê qual o tipo de livro que vai premiar. Você pode ler mais informações sobre ganhadores e a história do honroso quelônio no site da CBL.
Vale dizer que não foi a primeira vez que um livro de história em quadrinhos foi premiado pelo Jabuti, mas é a primeira vez que uma categoria específica para as HQs rolou. Para citar dois exemplos, a versão para o conto de Machado de Assis, O Alienista (Agir, 2007) de Fábio Moon e Gabriel Bá venceu na categoria “Didático e Paradidático do ensino fundamental e médio” em 2008; Kaputt (Wmf Martins Fontes, 2014), de Eloar Guazzelli, baseado no romance homônimo de Curzio Malaparte, levou o primeiro lugar de “Adaptação” em 2015. Muitas outras obras de quadrinhos entraram em listas de 10 finalistas, principalmente em categorias como ilustração, ilustração infanto-juvenil, adaptação e capa.
Abaixo, algum dos quadrinistas premiados (não necessariamente por seu trabalho com quadrinhos):
2016:
Ilustração de Livro Infantil ou Juvenil
1º Lugar – O Barco dos Sonhos (positivo, 2015), de Rogério Coelho [HQ]
2015:
Adaptação
1º Lugar – Kaputt (Wmf Martins Fontes, 2014), de Eloar Guazzelli [HQ]
2º Lugar – Grande Sertão: Veredas – Graphic Novel (Globo, 2014), de Eloar Guazzelli (roteiro) e Rodrigo Rosa (arte) [HQ]
Ilustração
1º Lugar – Claudius (Sesi-SP, 2014), de Claudius Ceccon [catálogo do ilustrador e chargista Claudius]
2º Lugar – Lobisomem sem Barba (Balão Editorial, 2014), de Wagner Willian [contos ilustrados]
2014:
Ilustração
2º Lugar – Storynhas (Cia das Letras, 2013), de Rita Lee com ilustração de Laerte [contos ilustrados]
2013:
Ilustração
1º Lugar – Primeira Palavra (Abacatte Editorial, 2012), texto de Tino Freitas com arte de Elvira Vigna [livro ilustrado]

2º Lugar – Dom Casmurro (Devir, 2012), roteiro de Felipe Grego com arte de Mario Cau [HQ]
3º Lugar – V.I.S.H.N.U. (Cia das Letras, 2012), roteiro de Ronaldo Bressane e Eric Acher, com arte de Fábio Cobiaco [HQ]
Didático e Paradidático

3º Lugar – Dom Casmurro (Devir, 2012), roteiro de Felipe Grego com arte de Mario Cau [HQ]
2008:
Didático e Paradidático do Ensino Fundamental e Médio
1º Lugar – O Alienista em Quadrinhos (Agir, 2007), de Fábio Moon e Gabriel Bá [HQ]
Sem surpresa, a área de ilustração vez ou outra entrega o troféu cascudinho a quadrinistas — inclusive, em 2017, Rafael Coutinho foi um dos jurados da categoria ilustração do Jabuti.
Para que uma categoria própria para as histórias em quadrinhos surgisse, foi necessário um cenário favorável em livrarias, com espaço próprio para os livros de quadrinhos e público consumidor, mas também houve a organização de autores e profissionais dos quadrinhos pedindo à CBL essa categoria específica. Uma petição foi encabeçada pelo quadrinista e artista plástico Wagner Willian, pelo jornalista Ramon Vitral e pelo jornalista e tradutor Érico Assis. Foi feita uma carta aberta e o abaixo-assinado circulou bastante, numa causa rapidamente aceita pelo povo dos quadrinhos.

A CBL ponderou a questão e respondeu positivamente, e assim criou a categoria para a premiação de HQs no 59º Prêmio Jabuti. A composição do júri foi bastante abrangente e conseguiu tocar diversos aspectos do cenário de quadrinhos: André Toral (quadrinista, professor e pesquisador), Cecilia Arbolave (jornalista, editora da Lote 42, proprietária da Banca Tatuí e organizadora da Feira Miolo(s)) e Érico Assis (jornalista, pesquisador e tradutor de quadrinhos).
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Conversamos com os jurados sobre como foi o processo de seleção. De acordo com Érico Assis: “Bom, em primeiro lugar, fui convidado pela CBL para ser jurado. Conferi os requisitos, questionei se alguns pontos da minha vida profissional eram impedimentos, confirmaram que não. Então recebi duas caixas grandonas com TODAS as HQs inscritas. Eram 53. CINQUENTA e TRÊS.”. André Toral detalha a etapa seguinte: “Desses [53 livros] tínhamos que selecionar dez e dar notas. Ganharam os dez selecionados mais pontuados pelos jurados de HQ.”
Essas notas atendiam alguns critérios estabelecidos pela CBL. Érico explica o que foi pedido: “(…) atribuir de 8 a 10 pontos a estas dez [obras] nos quesitos “Interação entre imagem e texto”, “Originalidade, inventividade e perícia técnica” e “Edição e produção gráfica”. Daí então a CBL somou as notas dadas na lista dos três jurados e gerou uma lista dos 10 mais votados. “Na segunda fase de votação, atribuímos novamente uma pontuação – de 8 a 10 – às dez finalistas. A CBL tabulou a pontuação de cada jurado para chegar às três vencedoras.”, conta Érico Assis.

André Toral chama atenção para o fato de que os jurados não tiveram contato entre si durante a votação e nem sabiam quem eram os outros dois: “Só conheci os nomes deles muito depois por vocês, não fazia a menor ideia de quem era.” Ele também comenta como pensou suas escolhas para a lista decisiva
Meu comentário é que o júri agiu com isenção e curiosamente votou de forma parecida. Acho que todos procuraram nomes novos, fora do mainstream comercial e obras que refletissem sobre a nossa realidade social. Repito que embora tivesse ouvido falar dos outros dois [jurados] nunca os conheci pessoalmente; até hoje. Os meus critérios pessoais para escolher as obras foram: (a) a obra dialoga com a nossa sociedade, aborda os problemas do Brasil? (b) a obra tem um conteúdo gráfico inovador? Tem um desenho de qualidade? (c) o prêmio pode mudar a vida de um autor pouco conhecido? (que adianta dar mais um prêmio para um autor consagrado que publica onde e quando quiser?) E, finalmente, (d) gosto de olhar com cuidado para trabalhos fora do eixo Rio–São Paulo. Fiquei feliz com os vencedores. O Gidalti, com seu fantástico Castanha do Pará, mereceu o primeiro lugar com seu terrível menino-urubu perambulando por Belém; o Marcelo Quintanilha com uma qualidade gráfica incrível numa HQ poética quase experimental; o André Dahmer, ah, o André Dahmer…, sempre angustiando a gente com esses personagens impassíveis diante de um mundo que desaba. Além dos vencedores, queria lembrar outros que estavam entre os dez da primeira seleção e que poderiam perfeitamente estar no pódio, como João Pinheiro e Sirlene Barbosa com a sua maravilhosa adaptação Carolina; José Aguiar, do Paraná, com seu Coisas para adornar paredes, dá um banho de roteiro, diálogos e uma aquarela impressionante com aguadas sutis e evanescentes (sim, evanescentes). Como campeão internacional de perder concursos e premiações, me solidarizo com todos os 50 que não ganharam e queria abraçar cada um.
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[Parlatório]
A seguir, uma rápida entrevista que fizemos por email com os jurados do Jabuti.

Mesmo sendo o Jabuti um prêmio ligado ao mercado livreiro, você acha que a lista faz jus ao cenário brasileiro de quadrinhos?
André Toral: Concordo. Acho que o Jabuti, sim, é uma fotografia parcial (como todas fotografias) do momento do mercado brasileiro. Veja só: 53 obras em formato livro ou álbum se inscreveram. Aqui não falamos de mundo zine (a usina dos quadrinhos), brochura, revistas, game, digital etc. Então é muita coisa feita aqui. O mercado brasileiro de quadrinhos é enorme, plural. É grande, diversificado: tem quadrinhos de super-heróis, infantil, juvenil, adulto, LGBT, abordando questão dos negros, índios, marginalizados, mangá, o que você pensar tem. O mercado produz para todos os gostos em muitos formatos. Temos feiras, bienais, temos nossos mitos e nossos santos. Criamos uma tradição em quadrinhos. Autores – não mais ilustradores – brasileiros publicam lá fora como o Marcelo D’Salete e Marcello Quintanilha e outros. A internet na virada do século, creio, turbinou vendas, articulações, conexões. Hoje não tem desculpa: só não publica quem não quer.
Cecilia Arbolave: Não creio que nenhum prêmio conseguiria abarcar o amplo cenário dos quadrinhos brasileiros. E, neste caso, é bom lembrar que a seleção foi feita em cima de quem se inscreveu – então, naturalmente, muita gente ficou de fora. Por sua tradição, o prêmio tem uma opinião de peso que pode estimular algumas transformações no quadrinho nacional, em teoria todas elas positivas. Mas ele é um juízo feito ainda sem o aval do melhor dos tribunais da arte: o tempo.
Érico Assis: Depende do que você chama de “cenário brasileiro de quadrinhos”.
Acho que a Grande Massa do Quadrinho Brasileiro tem três grandes potências que não estão representadas no Jabuti: o quadrinho importado em bancas e livrarias; o quadrinho brasileiro de banca; o quadrinho independente que não se dá ao trabalho de fazer ISBN. Pelas regras do Jabuti, nenhum desses vai ser representado. E aí você cortou… 80% da Grande Massa do Quadrinho Brasileiro que saiu em 2016? 90%?
E tudo bem que seja assim. Como você colocou, o Jabuti é um prêmio do mercado livreiro e deve-se representar o quadrinho que chega ao mercado livreiro. E especificamente o quadrinho produzido por brasileiros que chega ao mercado livreiro. Nas caixas de inscritos que recebi, entendo que essa fatia do mercado estava, sim, bem representada. Havia quadrinhos de gêneros diversos (super-heróis, autobiografias, fantasia, ficção científica, terror, crítica de costumes etc.), de autores e autoras em diferentes estágios de carreira, de editoras grandes e pequenas, de independentes. Portanto, a esse cenário brasileiro de quadrinhos, sim, o Prêmio fez jus.

A gente tem um insight de que a categoria Quadrinhos no Jabuti oficializa a saída dos quadrinhos nas bancas para as livrarias. Qual a sua opinião sobre isso?
André Toral: Entendo seu insight, mas respeitosamente discordo. Como um prêmio, um reconhecimento da importância do quadrinho como linguagem e literatura pode “oficializar” a saído dos quadrinhos das bancas? Depois, o quadrinho não saiu da banca. Bancas são como salas de cinemas nas mãos das grandes exibidoras. Quem compra quadrinho em banca busca super-heróis, mangá e Mônica. Eu comprei um gibi numa banca há 2 anos atrás (Mandrake da Pixel). Graças a Deus o quadrinho brasileiro está em locais mais democráticos e acessíveis que as bancas! Acho isso ótimo. Se meus livros fossem para a banca eu estaria morto, pois o tempo da banca é uma semana. E o de uma livraria? Se você não vende numa semana, o banqueiro tira você da prateleira porque ele está vendendo o espaço. Numa livraria seu livro fica mais tempo à espera do comprador. Aleluia.
Cecilia Arbolave: Opa, mas a Banca Tatuí está cheia de quadrinhos! Brincadeira. É um insight válido sim, pois o Jabuti valoriza o livro, objeto das livrarias, e não as revistas, o foco das bancas de revista. Isso, claro, traz consequências vastas que merecem um profundo debate.
Érico Assis: Não é por que o Atala coloca batata frita no cardápio que o McDonald’s vai cortar do seu.
Não acho que os quadrinhos tenham que sair de um lugar para ir para outro. Eles podem estar em dois, três, vinte, 842 lugares ao mesmo tempo. E não existe só um tipo de quadrinho.
Também não acho que a categoria no Jabuti oficialize a entrada dos quadrinhos na livraria. No momento em que as grandes redes colocaram seções de quadrinhos nas lojas físicas e sites, isso já se oficializou. Eu diria que foi entre 2000 e 2005 que Saraiva, Fnac, Cultura e outras acabaram com aquele prateleira baixinha de “Humor” ou o cantinho na seção infantil. E aí oficializaram seções de quadrinhos. Isso já tem mais de uma década.

Acredita que vai gerar algum impacto na cena?
André Toral: Não sei, acho que sim, positivamente. Um prêmio como esse, outorgado por gente de importância na cena cultural ou acadêmica, estimula notícias, provoca vendas, traz novos autores à luz, abre espaço na mídia, sempre interessada em descobrir quem será o “campeão dos quadrinhos”. Isso é ótimo! Depois, o pessoal do Jabuti é super profissional. O sistema parece ser à prova de fraudes ou arreglos. Você assina contrato formalizando o sigilo, entregam os livros na sua casa, pagam pró-labore, cumprem todos os prazos, dão atenção para jurados novatos, coisa de primeiro mundo. Queria terminar dizendo que achei ótimo o prêmio Jabuti ter reconhecido finalmente HQ como linguagem e possibilidade de expressão da língua. Que os futuros jurados de quadrinhos votem sempre com independência e coragem. Como nós votamos. Brincadeira, pessoal.
Cecilia Arbolave: Vai ser bom acompanhar os próximos passos do prêmio. Durante a cerimônia de premiação [no dia 30 de novembro], Luiz Armando Bagolin, o curador do Jabuti, falou em mudanças para a próxima edição. Tomara que essas mudanças apontem para um estímulo aos criadores, editores e leitores de quadrinhos.
Érico Assis: Acho que já gerou. A lista de finalistas rendeu alguns comentários, a lista de ganhadores também — principalmente dentro da nossa ceninha de HQ. Acho que podemos e devemos utilizar o Prêmio para levar os quadrinhos a outros públicos. Da minha parte, comecei a utilizar a lista de finalistas como um recorte excelente do quadrinho brasileiro atual, e recomendo aqueles 10 álbuns a quem ainda lê pouco quadrinho brasileiro. Acredito e defendo que aquela lista de finalistas é um lindo recorte do quadrinho brasileiro.
Editores e autores também têm que se dar conta que o Jabuti é o maior prêmio brasileiro do mercado livreiro e que isso tem reflexo na percepção de estrangeiros. Ou seja, toda obra finalista ou premiada acaba de ganhar um selinho que diz a editoras latino-americanas, europeias, norte-americanas e asiáticas que ela está entre as melhores do Brasil. Com Moon e Bá, Marcello Quintanilha, Marcelo D’Salete e outros estourando entre os gringos, seria bom aproveitar o embalo e exportar os outros nomes que figuraram no Jabuti.
Acredito que os maiores impactos podem ser esses: mais leitores para essas obras. Tanto no Brasil quanto fora. Espero que autores e editoras saibam explorar o selinho que ganharam desta forma.
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[Vem Comigo]
A seguir, resenhas curtas (tá, umas nem tanto) dos 10 quadrinhos da lista final do Jabuti:
Castanha do Pará (independente, 2016), de Gidalti Jr.
Desde os tempos imemoriais, o fabuloso nos ajuda a contornar a crueza do mundo. Castanha do Pará é uma colcha de fatos tristes, a história de um menino triste, costurada com as cores fabulosas de Belém do Pará, uma grande cidade em meio à floresta mágica da Amazônia.
Para além de todo o fascínio que as bandas do Norte exercem sobre os incautos do Sul, esse livro traz uma história urbana, com o mais urbano dos bichos da nossa fauna, um urubu, só que um urubu-menino. Mas o tom da narradora e o vocabulário dos personagens vão dando a dimensão pitoresca da história, como nas grandes narrativas brasileiras em que a cor local dá sabor único. Afinal, é um menino que dorme sob as barracas do Ver-o-Peso, maior mercado da capital do Pará, cheirando a tucupi, jambu, pupunha, açaí, filhote frito, cerveja, mijo e chuva, mas que sonha com o que vê na TV, Jaspion, Mara, futebol e Chapolin Colorado.
A narradora nos convida a ouvir uma história, que ela nunca começa a contar de verdade: a logorreia banal das vizinhas solitárias que se satisfazem com o voyeurismo da miséria alheia. E a história é ouvida no tempo da chuva, essa grande regente da vida dentro da floresta amazônica; quando é hora da chuva, não adianta ter pressa, é preciso esperar que o rio desabe sobre a cidade, todos os dias, em horários que só a chuva sabe.
Maria Clara Carneiro

Hinário Nacional (Veneta, 2016), de Marcello Quintanilha
Por que eu sempre penso no risco de ler um gibi do Quintanilha? Risco de que eu não entenda, de falar merda em resenha… eu não fiquei confortável lendo nada dele depois de Tungstênio, não na primeira leitura, pelo menos. Mesmo que eu tenha adorado Talco de Vidro logo de cara, eu sabia que tinha muita coisa lá que eu não tinha sacado de cara. Mas tá, bora lá.
Tipo, não é um desconforto ruim, se bobear não é nem desconforto. Foi que nem quando eu assisti A Bruxa… eu jurava que o diretor ia fazer cagada no meio do filme, ia acabar com tudo, daí assisti o filme preso nessa tensão. Bom, na real é viagem achar que o Quintanilha é autor pra se ler só uma vez. Oxe, claro que não é. Ainda mais a partir do Talco de Vidro, lá mesmo o cara assume outro patamar na hora de contar as nuances da vida normal. Quer dizer, o “normal” corrupto. O normal que a gente não olha muito a fundo pra não ver que na real é uma natureza violentada.
Dá até pra prever um pessoal comentando que o cara tá se repetindo, que de novo trata dos mesmos assuntos… só que o assunto não se encerrou pra ele. Ele ainda tem história pra contar. E, porra, é sobre o cotidiano, sobre as miudezas, então tem material pra uma vida inteira.
Para ler a resenha completa, clique AQUI.
Paulo Cecconi
Quadrinhos dos Anos 10 (Quadrinhos na Cia.,2016), de André Dahmer
André Dahmer já havia sido indicado ao Prêmio Jabuti de Ilustração em 2015, por Vida e obra de Terêncio Horto, da Cia das Letras. É até engraçado, e essa indicação é um grande exemplo da necessidade de uma categoria própria de quadrinhos: o livro inteiro composto de praticamente apenas três desenhos concorrendo entre ilustrações rebuscadas de livros variados? Não é preciso justificar o valor do trabalho de Dahmer, é sabido o quanto a força dele reside no minimalismo do desenho confrontado com o texto absurdo – no sentido absurdo da realidade absurda em que vivemos, bem Beckett, Ionesco, mesmo. Mas essa força do contraste, pelo nó, é uma característica da mídia dos quadrinhos em si, que se vale da justaposição dos elementos.
O mais engraçado ainda é que o 3º lugar do Prêmio Jabuti de Quadrinhos é um dos livros do Dahmer que reúne tiras suas em que ele se solta bem mais… na ilustração. A série, iniciada em 2010, retrata o início de século que deu a Dahmer o lugar todo especial em que ele criou e procriou suas tiras: os anos 2000 e a internet. A série “Quadrinhos dos anos 10” também vem da internet para o livro, como o autor aprendeu a trabalhar e onde cresceu com e junto ao público. Mas, folheando o livro, com uma edição quase invisível da Cia das Letras (o que é de se louvar sempre), a textura do papel pólen deixa mais delicado e vivo o desenho em que Dahmer varia a densidade dos pincéis, brinca até com aquarelas. Como sempre, ele nem precisa assinar para a gente reconhecer suas tiras, as conversas estranhas entre os donos do mundo (todos brancos, homens) e seus filhos perdidos.
Para a leitura na íntegra da resenha, por AQUI.
Maria Clara Carneiro
Bulldogma (Veneta, 2016), de Wagner Willian
No fim, é tudo ficção e Wagner William explora isso muito bem em Bulldogma. Deisy Mantovani não existe, mas ela manteve um blog cheio de ótimas conversas com muita gente boa dos quadrinhos brasileiros. Ela também é ilustradora e conhece bem as agruras da profissão, do mercado editorial e das vaidades do meio. Deisy não existe, mas o Wagner outro dia compartilhou uma foto dela no Facebook.
Bulldogma é uma longa história em quadrinhos contando sobre a vida de Deisy após ela se mudar pra um novo apartamento, em um bairro cheio de histórias sobre abduções e contatos extraterrestres. A vida de Deisy, assim como a de muita gente, é toda marcada por ficções, muitas importadas e colocadas na mesinha da sala feito bonequinhos (ou action figures, como querem os geeks).
É justamente na superposição de ficções, na mistura de memória, alucinação e diegese que está todo o sabor de Bulldogma. Uma deliciosa brincadeira com percepções de realidade que consegue traduzir aquela sensação de despertar de um sonho e descobrir que seguimos sonhando.
Liber Paz
Carolina (Veneta, 2016), de Sirlene Barbosa e João Pinheiro
Carolina, de Sirlene Barbosa e João Pinheiro, tem algo de “bem comportada”. Ainda que utilize recursos como flashbacks e algumas representações de sonhos e devaneios, de modo geral a estrutura de suas páginas e narrativa é convencional, clara e precisa, como seria de se esperar de um relatório ou um documento científico. Essa opção aumenta o potencial da obra.
O livro de Barbosa e Pinheiro descreve nossa realidade absurda a partir da biografia da escritora Carolina Maria de Jesus. Mãe solteira de três filhos, favelada, Carolina vive do dinheiro que consegue como catadora. “Eu sou negra, a fome é amarela e dói muito”, escreve Carolina. E escreve muito, várias centenas de páginas. Declara-se poetisa, proclama que é impossível viver sem literatura. Do lixo tira sua sub-existência até que, ao acaso, um repórter a “descobre” e começa a publicar suas histórias e textos.
Com o sucesso, deixa a favela, vai morar na cidade, depois em um sítio. Seria uma história de vitória, se Carolina não se descobrisse como um produto, uma curiosidade de consumo, que tem sua vida útil e, aos poucos, vai sendo esquecida. Barbosa e Pinheiro não mostram apenas o desencanto da fábula de Carolina, mas expõem de maneira dolorosa e incômoda a condição sub-humana e miserável de milhões de pessoas.
Liber Paz
Coisas de Adornar Paredes (Quadrinhofilia, 2016), de José Aguiar
Desde a adolescência, eu andava por aí, olhava pras ruas, pra prédios à noite, casas ao longe, e pensava o que aquilo trazia, emitia, que eventos ocorriam naqueles lugares, tentava abraçar o clima que só eu via naquele evento. Porque eu sempre vi a cidade como uma coisa viva, cada fragmento dela com uma existência própria. Viajo nisso até hoje, ainda penso nas histórias. E eis que me aparece um livro com essa mesma ideia, mesmo sentimento. Diferente de mim, o José Aguiar não ficou viajando, ele colocou a mão na massa e produziu algo que corria pelo meu cérebro há muito tempo.
Coisas De Adornar Paredes traz essa relação de objetos/lugares com situações e pessoas, do inevitável atrofiamento que o tempo causa nas coisas. É, principalmente, um passeio estético deslumbrante pela arte geométrica do José, cheio de desenhos grandes, uma narrativa com bastante espaço, que respira, painéis e páginas tão imensos que dão o impacto de uma tela de cinema, tudo isso utilizando um preto e branco e cinza que remete aos filmes de terror dos anos 40.
Paulo Cecconi
Hitomi (Balão, 2016), de Ricardo Hirsch e George Schall
Hitomi narra as aventuras da jovem personagem-título quando descobre em casa um artefato que a permite parar o tempo — e se põe a mostrar o que uma menina tímida de idade escolar faz com esse poder.
A história, escrita por Ricardo Hirsch, tem claras referências à animações japonesas do Estúdio Ghibli, em especial quando se trata da Hitomi, sempre introspectiva, preferindo observar e aprender com o mundo. Aos poucos a HQ te ensina a acompanhar o ponto de vista da menina e atentar para os detalhes, tanto do mundo de Hitomi quanto da arte da HQ — George Schall num estilo diferente de seus trabalhos anteriores, mais solto e leve, se encaixa bem com a trama.
Talvez em mais do que qualquer outra mídia, tempo e espaço dividem área nas histórias em quadrinhos. Hitomi é um convite para leitor se colocar no controle da situação, tal qual a menina e sua câmera.
Felipe 5 Horas
Rasga-Mortalhas (Zarabatana, 2016), de Diego Bercito e Pedro Vergani
Era uma vez, um macaco que vinha avisar o rei de que o mundo ia acabar… O resto são as palavras que fazem a história. Eis aí uma metáfora até de algum interesse, mas meio desonesta. Rasga-Mortalhas é uma fábula sobre reis, príncipes, castelos em elefantes, viagem para o leste e o fim do mundo (é como se diversas fábulas se entrincheirassem entre as páginas do livro), mas o tom de encantamento não está só no enredo ou no texto, mas está na arte de Vergani. Ou melhor, está principalmente na arte de Vergani.
São diversas páginas pra contemplação, pra se imaginar o que acontece naquele mundo chapado de três cores, sem meios tons. Belíssimo. O livro, inclusive, ganhou o prêmio na categoria HQ na 12ª Bienal Brasileira de Design, que aconteceu em Brasília.
O ritmo da história é veloz, os acontecimentos se pontuam como em parábolas, mas nem em todos eles se sabe o que aconteceu ou o porquê de Bercito e Vergani nos mostraram aquilo. É como se eles quisessem que a história sobrevivesse ao fim do mundo da ficção que não é fechar um livro; é a história não ser capaz de virar um macaco pra sussurrar na orelha do leitor minutos, horas, dias, semanas, anos depois: se lembra de mim?
Lielson Zeni
Savana de Pedra (Astral, 2016), de Felipe Castilho, Tainan Rocha e Wagner Willian
Se teve um acontecimento desses últimos anos que me tocou pra valer foi a ocupação das escolas por alunos que lutavam (mesmo) pra que elas não fossem fechadas. E Savana de Pedra opta por registrar esse momento.
A história coloca três ilustradores pra trabalhar simultaneamente em cada página: Felipe Castilho e Tainan Rocha desenham cada um a perspectiva de um dos personagens principais da história (um menino da ocupação e um policial responsável por tirar ele de lá); o desenho do meio, de Wagner William, é uma sequência de imagens de um felino predador, que serve como metáfora da história toda. O trio encontra uma solução bastante boa e inteligente pra desenharem juntos sem deixar a página desatinada.
A ideia de LITERALMENTE desenhar a metáfora da situação poderia cair no excessivamente didático, mas acaba se resolvendo bem na amarração da história, justificando aquelas fotos. Ali também surge a (boa) explicação do título.
A narrativa de pouco texto funciona direitinho, com ações consequentes em cada uma das linhas desenhadas e um bonito bailado entre os três traços. Mas, ainda assim, pra mim, o grande lance do livro é lembrar a gente da valentia daqueles estudantes.
Lielson Zeni
Você É um Babaca, Bernardo (Mino, 2016), de Alexandre S. Lourenço
A heart that’s full up like a landfill
A job that slowly kills you
A nossa vida não é uma grande aventura. Os dias são uma corrente de rotinas com pequenas diferenças. Vez ou outra, um pico de emoção: emprego novo, paixão, uma tarde com amigos. Seguem daí diversos dias similares de novo, até que as coisas maneiras de antes virem triviais e nem nos lembremos mais.
Você é um babaca, Bernardo trata disso tudo: desses tempos mortos e iguais, mas que Alexandre Lourenço consegue nos mostrar que ali tem motivo pra memória.
É uma relação entre vivência e tempo. Tempo sempre vai apagar tudo, nem as rochas resistem, por que achamos que memórias serão eternas?
Nessa vontade de nos salvar do tempo vem a escrita, o desenho e a expressão humanas, por exemplo. E o tempo, aquele de quem corremos, é um elemento que Lourenço entendeu que nos quadrinhos só pode existir como espaço.
As nove janelas do começo desenvolvem rotinas de dias diferentes, mas muito parecidos; quando vem uma página quase toda branca, há compressão do tempo e de percepções; quando uma imagem é quebrada em frente e verso, entendemos que o espaço que separa os personagens é invencível.
Lourenço entendeu que o tempo não consegue ser igual e nos convence disso pela repetição.
Lielson Zeni (texto originalmente publicado na Plaf 1)
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Erguemos loas e honras a André Toral, Cecilia Arbolave e Érico Assis pelas respostas e disposição para a entrevista.
Participaram faceiramente da escrita desse texto Felipe Horas, Liber Paz, Lielson Zeni, Maria Clara Carneiro e Paulo Cecconi.
Um aceno efusivo aos amigos Érico Assis (de novo), Ramon Vitral e Wagner Willian que botaram energia pra que essa categoria História em Quadrinhos existisse no Jabuti.
Nossos calorosos abraços nos finalistas e um especial tapinha “meu guri! style” nos respectivos ombros do Gidalti, do Quintanilha e do Dahmer, pela premiação.
Um comentário em “[Com Tudo] Prêmio Jabuti para Quadrinhos”