Aprendi depois de velho que aquilo que desconfiava era verdade: realmente estavam me falando menos do que aconteceu nas aulas de história.
Não sei como isso anda hoje, mas lá no final dos anos 1980/começo dos 1990, quando eu fazia Ensino Fundamental (na real, eu fazia 1º Grau), o ensino de história tinha mais saltos temporais que Primer: Pedro Álvares Cabral chega doidão, Caminha manda carta, pula pra capitânias hereditárias, jesuítas e bandeirantes, pula pra Inconfidência Mineira eticamente anabolizada, “digam que fico”, “Independência ou morte”, Lei Áurea, milicos na presidência, café com leite, Getúlio, golpe dos milicos.
Em algum lugar apropriado aí no meio vinha uns 2 ou 3 parágrafos de “holandeses tomaram parte da costa nordestina brasileira por um par de anos” (que servia mais como tática de PEGA-RATÃO pra aluno distraído esquecer da Holanda quando viesse a pergunta na prova: “Quais países controlaram território brasileiro? [nunca me falaram dos EUA e seu controle econômico no século 20, coisas da vida]).
A tal invasão holandesa é uma parada tão sui generis, que realmente vale parar pra ver e pensar um pouco nisso. Paulo Leminski fez o Catatau (obra MAS-TER da prosa experimental BR) baseada (hã-hã) na ocupação holandesa do Recife e Olinda. Peraí que vou delegar um parêntese explicativo sobre o escritor curitibano e essa obra. Ou seja, se não quiser saber disso, só pular o próximo parágrafo.
(Leminski dava aulas de história [olha só!] e na parte da invasão holandesa ele percebeu que o René Descartes servia como militar ao Mauricio de Nassau, bem no período que eles dominaram parte do Nordeste e teria sido possível, teoricamente, que o Descartes tivesse vindo ao Brasil. Dessa PIRA, Leminski coloca o filósofo sentadinho, fumando maconha, esperando um oficial polonês, e BEM LOKO de erva e com a paisagem. É um texto sobre linguagem, não de enredo, que defende a ideia de que a lógica e a razão europeia, encarnadas como Descartes não servem tão bem aos trópicos.)
André Toral tem, em Holandeses (Veneta, 2017), o trabalho da pesquisa histórica e ficcionaliza a partir de personagens históricos, guiado pelos documentos que existem. Apesar de toda essa base documental, pra mim, graças ao esburacamento das aulas de história do professor Bigode (alcunha da época) e também ao delirantexto do Leminskinha, o livro tem um ar fantástico de algo que não existiu ou não podia ter existido (claro que aí é problema meu).
Tanto se falava anos atrás em quadrinhos em sala de aula e poucas vezes vi um material mais adequado. Aqui esquecemos essa coisa de facilitador da leitura ou ponte pra outros temas. O quadrinho é todo o tema e pra chegar nesse tema o seu leitor emprega as aptidões necessárias pra leitura de quadrinhos.
O livro se estrutura como 6 contos autocontidos, produzidos em diversas épocas (2010, 2012, 2013, e 2015), mas centrados no mesmos personagens.
A arte do Toral é de poucos detalhes nas linhas, mas não se aproxima do cartunesco. Mesmo o cenário é desenhado com precisão ainda que com economia de traço. É como se o desenho fosse o esqueleto da cor aquarelada que ele usa. A cor me ajuda a defender esse ambiente fantástico que disse antes também – várias vezes o fundo dos quadros são apenas cores, mas em vez do chapado da Turma da Mônica (por exemplo), é aquarela.
Do ponto de vista do enquadramento, Toral engalfinha a história nos gêmeos Cástor e Esau (pirei horas com a mistura dos pares Esaú-Jacó e Cástor-Pólux), recorrendo então a planos aproximados dos personagens e quadros abertos pra posicioná-los em relação ao cenário. Quando o autor opta por não mostrar os personagens, há cenas lindas como os patos na lago na primeira história ou os pássaros sobre o mar na segunda.
Por conta dessas opções de arte, o apuro histórico não me sufoca ou engessa minha leitura, como já aconteceu em obras obcecadas pela reconstrução dos detalhes. Outro exemplo de que Toral abre mão é a reprodução da fala da época, trazendo a linguagem pro português brasileiro contemporâneo. Mesmo quando se conversa em outros idiomas, o que o leitor tem aos seus olhos é Pt-Br.
Ainda sobre o texto, a obra é puxada pelo discurso direto dos personagens (neste caso, balões de fala e pensamento), com entradas para o recordatório ocasional. Nos primeiros contos, a narração parece neutra e serve pra localizar elipses (“enquanto isso, na sala da justiça”), mas com o passar do tempo, Toral aparentemente resolveu arriscar dar personalidade à voz desse narrador, o que resulta em efeitos interessantes.
Mesmo o português contemporâneo não nos prepara pra citação de Lourenço Mutarelli. Esse narrador está fora daquele tempo mesmo e usa tudo que estiver em seu interesse pra contar essa história.
Essa articulação fina entre os discursos causa estranhamento ao mesmo tempo que presentifica a obra. É uma forma de dizer que aqueles holandeses ainda estão em Pernambuco. E estão mesmo.