[Historinhas] Plastic Man e a Ternura

Rafa Campos, amado autor e polemista, nos envia esse petisco do que foram suas aulas nas últimas duas semanas no SESC Pompeia, sobre História dos quadrinhos.

As histórias de “Plastic Man” escritas e desenhadas por Jack Cole são as melhores histórias de super-heróis de todos os tempos. Pode ser uma afirmação exagerada, em um gênero que tem pérolas como o “Frankstein” de Dick Briefer e “Herbie” de Odgen Whiney e, principalmente, as obras de Flechter Hanks. Mas os dois primeiros não são exatamente super-heróis (se nos ativermos ao conceito de gênero de forma mais ortodoxa) e Flechter Hanks é um gênio algo involuntário, que nos delicia pela sua própria ingenuidade e liberdade.

As páginas de abertura eram o ponto alto dos quadrinhos de Plastic Man, e essa é o ponto alto de suas páginas de abertura; um vilão cujo superpoder é ter uma cara tão triste que faz com que as pessoas deem dinheiro, joias e tudo o que tem para ele.

Os mais jovens, ou nem tanto, talvez citem Alan Moore e suas diversas contribuições as duas gigantes Marvel e DC. O talento de Moore é realmente extraordinário, mas não é só de talento que se faz um clássico, mas do momento histórico. Moore começou a trabalhar já no declínio cultural dos super-heróis, e está para Cole como Keneth Noland está para Édouard Manet, por exemplo.

Cole, afinal, fez com Plastic Man o que a geração de Manet fez com a pintura, diminuindo o tom heroico e grandioso da interpretação, e tornando-a irônica e autorreflexiva. Cole, entretanto, não fazia parte de uma geração. Ele e Will Eisner estavam a quilômetros dos outros produtores de super-heróis de sua época, distância que fez com que Spirit sequer seja listado como um exemplo do gênero.

Os jovens – sempre eles – podem achar que os sombreados naturalistas e o clima soturno dos desenhistas de heróis atuais já sejam uma autorreflexão sobre o gênero, mas estão, de novo, enganados. Os tons sombrios das histórias atuais são uma tentativa de naturalização, via cinema americano fascista (desculpem o pleonasmo), da violência arbitrária dos super-heróis. Violência essa que os clássicos, como o próprio Cole, transmutavam em arte, por meio de uma singeleza e uma ambiguidade que hoje, pelos fiscais de canção popular, seria visto como mera propaganda do modo de vida masculino americano.

Também estariam errados ao jogar essa pecha em Cole. Plastic Man é um herói abertamente emasculado. Melhor, uma superfície, uma estrutura que se aplica aos roteiros, sem a tridimensionalidade que os nerds colonizados julgam uma qualidade à priori. O Plastic Man de Cole é também um ideograma ou – de novo, para dialogar com vocês, infelizes – um algoritmo que filtra o argumento e o transforma em uma história de Plastic Man.

Enfim, sua falta de interioridade e tridimensionalidade como personagem, a ausência de “personalidade forte e paradoxal” é o que o transforma em uma espécie de Hércules, Teseu, Moisés e tantos outros heróis místicos. Plastic Man é uma estrutura, volto a repetir, e como toda a estrutura pode ser transplantada de um cenário e enredo ao outro sem perder o seu frescor e novidade.

As novidades formais dos quadrinhos de super-heróis dos anos 1960, incentivadas pela explosão de criatividade de artistas europeus como Jean-Claude Forrest, Philippe Druillet e Guido Crepax, transformou, é verdade, o gênero. Em desenhistas como Jim Steranko, os quadrinhos, suas molduras, mal continham os personagens, e tinham as mais variadas formas e diagramações. Comparado a Steranko, a diagramação de Plastic Man é rígida, ainda mais se pensarmos na essência elástica do personagem. Comparados a Dennis O’Neil, os argumentos de Plastic Man podem parecer de uma alienação social exasperante.

Cole tentava compensar a rigidez da diagramação dos anos 1940 com as características de seu personagem. Nessa página, o corpo elástico de Plastic Man nos conduz de um quadro a outro, em uma aventura alucinada.

Mas, feliz ou infelizmente, e por mais que seja um artefato material, a arte não é feita de elementos formais. Steranko não é Druillet, e muito menos Crepax. Steranko é um jovem e brilhante progressista da arte, como Lorenzo Ghiberti na arquitetura e Noland na pintura. Dennis O’Neil também não é Forrest, ainda que se julgasse muito superior. O’Neil era menos facista e americanófilo que seus colegas no universo de quadrinhos de super-heróis, o que ainda o deixa a quilômetros da fúria libertária de Barbarella.

Mas Cole pode ser comparado a Jean-Claude Forrest, Crepax e, com alguma vantagem, a Druillet.

Porque a arte não é feita somente daquilo que o artista quis falar, mas do que ele disse, inclusive à sua revelia. [grifo dos editores] Como se a obra realmente falasse por si, independente das ideias do artista, seguindo a sua logicidade interna de obra. Essa lógica, liberta do lastro da moral humano, alça a obra a uma leveza, mormente a brutalidade de seus temas, que tem seu único correlato – na história social dos afetos – à ternura revolucionária a que se referia Ernesto Guevara.

No ano do assassinato de Guevara, Otis Reeding cantava “Try a Little Tenderness” em um festival, em meio aos seus próprios gritos guturais e uma plateia que queria ver explodir as estruturas da sociedade opressora.

Décadas depois, a diva pop e artista multitalentoso Kanye West fazia, com Jay-Z, uma homenagem a Otis Reding, em uma música chamada, justamente, “Otis”.

A música não é ruim, e tanto West quanto Z sabem o que fazem. E eles usam um sample de um fraseado selvagem e gutural de Otis para embasarem seu estilo de vida como uma espécie de talento. O estilo de vida que eles compraram, por sinal.

Na versão de West, os seus Mercedes Bens, seu desprezo às mulheres, seu justificado ódio ao racismo se faz o tempo inteiro presente, como uma conquista pessoal, dele, de Jay-Z e de outros milionários da música mainstream estadunidense. As conquistas de West, segundo ele próprio, são fruto de sua impetuosidade individualista contra a vida opressora em uma sociedade igualitária, onde gênios e medíocres tem os mesmos direitos civis.

De qualquer forma, é uma questão pessoal, como as lutas dos super-heróis atuais, cheios de interioridade, combatem o crime para afastar seus próprios fantasmas.

West e os artistas atuais de quadrinhos, mesmo os melhores, deveriam tentar um pouco daquela ternura, sem a qual nenhuma violência se justifica. Com ternura você toma a Bastilha e enterra o feudalismo. Com a ternura você assassina todos os colonos brancos que tomam sua querida Haiti, espetando seus filhos em palos virados para o oceano, como um aviso aos novos escravagistas. Com a ternura você se afasta da subversão contrarrevolucionária e se aproxima da disciplina revolucionária.

Em Plastic Man, tanto o fetiche mais sórdido quanto a violência mais extremada adquire uma leveza pueril, que se sobrepõe, inclusive, a própria autoironia da obra.

Jack Cole tirou a própria vida, provavelmente incentivado pelo clima de opressão da américa-macarthista. Seu herói sem face, um ex-escroque que se volta para a defesa da lei e da ordem, nunca vai pagar pelos crimes que cometeu em seu passado meliante, e nem pelos que comete agora em nome da lei assim como os homens que condenaram à morte o seu criador.

Como todos os heróis, Plastic Man é um autoritário e um contraventor. Mas como toda figura de fábula, suas contravenções são meros inventos poéticos, que perdoamos com a ternura que dedicamos às melhores traquinagens de nossos filhos, pelo menos enquanto eles ainda são crianças.

Por que depois, bom, depois já é fascismo.

ternamente,

RCR

(roteirista, desenhista, escritor e idiota)

P.S.: http://colescomics.blogspot.com

Esse é dos melhores sites dedicados a um só autor de quadrinhos que se tem notícia. Se não for o melhor.

Publicado por mckamiquase

Maria Clara Ramos Carneiro on ResearchGate https://orcid.org/0000-0003-2332-1109

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