
Em 24 de março de 2019 rolou um evento dedicado a cultura pop, com grande foco nos quadrinhos. Mas a Perifacon tem um sabor especial: é o primeiro movimento, dessa série de convenções que tem rolado de uns 5 anos pra cá, organizado em um grande centro fora do centro. É um evento que aconteceu no Capão Redondo, em São Paulo, da ponte pra lá em relação ao centro da cidade.
A quadrinista Luli Penna foi até lá e a convidamos para falar de como foi sua percepção da Perifacon. Vamos com ela
PERIFACON, A COMIC CON DA FAVELA
por Luli Penna
Baldeando da estação Santa Cruz pro Capão Redondo, percorri o labirinto de acesso à Linha Lilás filtrando as pessoas que seguiam o mesmo rumo. Uma garota de minissaia com heroína de HQ tatuada na panturrilha e um moleque com cabelo black power gigante foram as duas figuras que eu voltaria a encontrar novamente no final da linha, com mais umas 15 ou 20 que, durante o percurso, apostei que desceriam no Capão.
Da Santa Cruz até lá dá quase uma hora dentro do metrô. No final, o trem sai pra fora da terra e a janela vai enquadrando a favela gigante que passa ali do lado, entremeada por alguns condomínios altamente murados.
Pelo celular, acompanhava meu grupo de Whatsup das minas dos quadrinhos. Tínhamos ficado meio de ir juntas, mas o bonde se desfez e tava cada uma meio por si só. Ainda pra chegar, li uma mensagem da Uva: “Cheguei! O caminho é sussa. Tem ônibus fácil pra Fábrica de Cultura. Mas a fila pra entrar tá gigante, acho que não vou aguentar esperar e vou vazar”. Em seguida, a foto de um quarteirão enorme tomado pela tal fila.
Desde o dia anterior, quando tentamos marcar de ir juntas, ninguém comentou muito, mas estávamos meio apreensivas sobre como atravessar os 3,5 km que separam a estação de metrô do local da Perifacon, a tal Fábrica de Cultura. Acho que não era pra menos, afinal a fama de bairro violento do Capão é histórica. Pra mim, que nasci no centro do privilégio, até chegar lá, o Capão só era realidade nas letras dos racionais
Aqui não vejo nenhum clube poliesportivo,
pra molecada frequentar, nenhum incentivo.
O investimento no lazer é muito escasso,
o centro comunitário é um fracasso.
Mas, ai, se quiser se destruir está no lugar certo,
tem bebida, cocaína sempre por perto,
a cada esquina, 100, 200 metros.
Ouvi esses versos de “Fim de Semana no Parque” no lançamento da coletânea Raio X do Brasil, em 1994. Era a primeira música do CD, logo depois da intro curta em que o Mano Brown se apresenta e, como todo mundo da minha geração, fiquei paralisada. Conheço pouquíssimas pessoas com minha idade (sou de 1965) ou mais que não se lembre exatamente de onde estava no momento em que ouviu esse CD pela primeira vez (essa coletânea dos Racionais e a morte do Bob Marley foram os dois acontecimentos musicais mais chocantes que vivi).
Pra gente, aquilo foi radical. Era a primeira vez que a voz do morro não convocava a celebração de um povo numa melodia comum, ao contrário: a galera da favela dava nome aos bois
um cheiro horrível de esgoto no quintal,
por cima ou por baixo, se chover será fatal,
um pedaço de inferno, aqui é onde estou,
até o IBGE passou aqui e nunca mais voltou.
Não tinha mas nem meio mas. Eles eram a periferia, os manos, os caras subtraídos da alegria nacional. E o meu nome ali naquele lugar, naquele momento, também era claríssimo
olha só aquele clube que da hora,
olha aquela quadra, olha aquele campo, olha,
olha quanta gente, tem sorveteria, cinema, piscina quente,
olha quanto boy, olha quanta mina,
afoga aquela vaca dentro da piscina.
Tem corrida de kart, dá pra ver,
é igualzinho o que que vi ontem na TV.
Olha aquele clube que da hora,
olha o pretinho vendo tudo de fora.
Nesses versos não havia comunhão, só o raio x de um projeto de país excludente e cruel. O nome das coisas era inequívoco, não havia dúvida: a gente não era da quebrada, a gente não era mano, a gente não era legal. A gente era parte da playbozada. Na verdade, por ser mulher, e não ser a mãe dos caras, que eram as únicas minas que se salvavam nesses primeiros raps, era menos que mina, que playba, era vagabunda mesmo. Vaca, puta, vítima da misoginia que vinha de bônus no lamento dusmanu.
De fato, algum tempo depois da coletânea Raio X do Brasil, fui com dois amigos da faculdade, o Márcio, playbamaster, e o Anderson, a um show deles. Entramos totalmente ressabiados no galpão lotado (nunca tinha visto tantos homens num lugar que não fossem as queridas boites gays dos anos 80) e, enquanto ainda tentava entender o que estava acontecendo, procurando mais alguma vaca ou um playba além da gente (acho que vi só mais uns três ou quatro), um dos caras no palco pegou o microfone e deixou bem claro: “OLHA, é o seguinte, a gente sabe que tem uns playba aqui dentro, mas a gente queria deixar bem claro que esse show aqui é pra moçada da favela do Funchal”! A galera veio abaixo delirando com aquele esculacho na gente.
De lá pra cá, alguma coisa mudou. O próprio Mano Brown reviu minimamente a misoginia das letras, assisti a outros shows dele coalhados de playbas muito bem recebidos e eu cheguei de metrô no Capão para visitar um centro cultural. Mas assim como não conheci o Capão do Raio X, a não ser em versos, não conhecia nada desse Capão que estava ali. Nisso, mais uma mensagem da Uva chegou antes de eu descer na estação: “Gente, não vou vazar, não. A fila é gigante mas as pessoas são superlegais. Vou ficar por aqui mesmo”.
Desci na estação ilhada por avenidas e colei numa garota vestida com camiseta da NASA e tranças blacks gigantes. “Tá indo pra Perifacon?” Fomos andando juntas pela calçada estreita e detonada, cheia de camelôs, até cruzarmos dois manos. Sabem onde é a Fábrica de Cultura? “Claro! Pega o Valo Velho ali naquele ponto e pede pra descer na padaria X.” Quando chegamos ao ponto, vi que tinha uma galera seguindo a gente mas, já dentro do ônibus, descobrimos que só uma mina, que virou rapidamente nossa líder, sabia mesmo onde era a Fábrica de Cultura.

Chegando lá, ficamos pra trás na hora de atravessar o sinal, mas nossa líder nos esperou do outro lado do trânsito caótico da avenida lotada de camelôs e pequenas barracas de feirantes. Fomos todos andando em fila na estreitíssima faixa que sobrava para pedestres até quebrarmos numa ruela por onde seguimos em meio às casinhas cheias de gente nas lajes, nas garagens, nas calçadas. Depois de atravessar muito churrasco e outras comemorações domingueiras, chegamos à famosa fila. Era gigante e não andava. Mas estava todo mundo diboas, na maioria jovens, mas muitos adultos, muitos com crianças pequenas, e muitos cosplayers, vários caprichadíssimos, alguns bem improvisados.
Depois de esperar uns 15 minutos, descobrimos que ali era a fila para quem não tinha se cadastrado. De fato, no site da Perifacon, havia o alerta na primeira página: se não quiser pegar filas, inscreva-se aqui. Era o que todas as pessoas e eu, que viemos no mesmo ônibus, tínhamos feito. Mudamos de fila e entramos em menos de 5 minutos no prédio de 5 andares da Fábrica de Cultura.

O lugar estava lotado, com fila pra tudo. Mas até a hora de ir embora, quando descobri no final que muita gente não tinha conseguido entrar depois de passar duas horas na fila, por causa da lotação, lá dentro o clima era de celebração e alegria geral. Passei rapidamente pela biblioteca, cheia de adultos e adolescentes jogando RPG nas mesas e crianças brincando de uma luta altamente ritualizada com espadas de papel (algum jogo que deve ter nome conhecidíssimo que desconheço). Nos corredores, muitos jovens, crianças e cosplayers andando de um lado pro outro.


Subi pelas escadas ao andar das salas de palestras para tentar chegar a tempo de pegar a mesa “meninas nerds”. Consegui um bom lugar na fila e entrei na sala boquiaberta quando percebi que o pessoal da imprensa tinha ficado pra trás, que só entraria depois do público normal e que assistiria tudo de pé (primeira vez que vi o público passar na frente da imprensa…)
A mesa foi mediada por Juliana Oliveira, professora do Capão e participante do Minas Nerds, criatura maravilhosa, inteligentíssima e altíssimo astral, que entrevistou a Raquel Mota, a Adriana Melo e a Natália Bridi. A conversa foi engraçada e super no espírito do “aí galera, todo mundo tem um celular, dá pra aprender tudo no Youtube, vai atrás do que você sempre quis sem se deixar abater pelos haters, pela misoginia, pelo racismo, pelos caras que ficam comentado nossa aparência ou tentando fazer a gente provar se é nerd mesmo querendo saber em que edição do gibi tal o super-herói y ganha do vilão wxz”. Fiquei besta com a alegria e o alto astral da mesa. Falando das durezas da vida nerd (a Juliana, que é professora, pontuou que na quebrada tudo é muito mais longe, mais difícil etc: “meus alunos ainda são muito jovens, mas já são pais e mães dos seus irmãos mais novos”), tudo era dito com um otimismo que eu julgava impossível neste país pós-bolsonaro.
No fim da mesa, conheci o Urbano, do site RPG Vale, que me apresentou a Raquel Motta, a programadora de jogos que desenhou um game baseado em Angola Janga (Veneta, 2017) do Marcelo D’Salete. Enquanto falava com ela, já na sala de games, vi uma garota lutando para conseguir fazer o herói-escravizado fugir do engenho e chegar a Palmares. A tela parecia um gouache, com cores incríveis e um traço que nunca tinha visto num game.

No corredor da sala dos artistas estavam expostos cartazes com o trabalho Rap em Quadrinhos do youtuber Load e do ilustrador Wagner Loud. Eram prints de cantores de rap transformados em heróis de HQ. Coisa linda aquilo. Enquanto esperava na fila para entrar na sala dos expositores, recebi mensagem da Carol, do meu grupo de minas quadrinistas. “Tô indo embora. Quer carona?” Minha bateria estava em 5%, a fila pra entrar demoraria ainda pelo menos uns 30 minutos, já era tarde, estava meio que com a cabeça no meu filho em casa e como, além de tudo isso e principalmente, não sabia que teria de escrever um texto a respeito do evento, resolvi aproveitar a carona mesmo sem ter visto nem metade do que queria.

Saindo, passamos do ladinho do concurso de cosplay que fervia na tenda armada no pátio em frente a Fábrica de Cultura. Voltamos de carro com o namorado da Carol dirigindo, nós três atravessamos o Capão a milhão porque os dois estavam atrasadíssimos pra um show no CCSP. A gente estava acelerado, sim, mas me sentia em uma Kombi cheia de freiras a cada grupo de motoqueiros, lokos, LOKOS, mas lokos mesmo, que surgiam não sei de onde contra nosso carro, dos quais o namorado da Carol se desviava alegremente, sem pestanejar nem mover um único dos seus dreads mais velhos que meu filho de 15 anos: “Aqui é Capão!!!” Depois de horas atravessando quebradas, cruzamentos, avenidas, viadutos que nunca desembocavam em nada que conhecesse, realmente entendi a distância que separa o Capão do que costumo chamar de São Paulo.

Já em casa, comecei a procurar no Instagram e no Facebook as pessoas que tinha conhecido pessoalmente ou que estavam relacionadas de algum modo ao evento: artistas, organizadores etc. Igor Nogueira, Andreza Delgado, Luíze Tavares, Osafi Motta, Gabrielly Oliveira, Ricardo Urbano, Raquel Motta, Nazura, Radish, FundãoRoupas e muitos outros de quem não me lembro agora. Ao começar a segui-los, fui percebendo quanta gente havia ligada ao movimento de ocupação das escolas estaduais, a diversos grupos do movimento negro e de vários tipos de ação política e social. Isso me deixou ainda mais intrigada quanto ao otimismo e às falas sem lamento de todos os envolvidos e ao fato de que, pela primeira vez em muito tempo, não ouvia durante um dia inteiro a palavra mais feia da atualidade: Bolsonaro.
Não tenho como explicar isso. Só posso dizer que essa galera tem discurso muito diferente do discurso da minha quebrada, que fica, como disse no início, no centro do privilégio. Aqui ou carinha é reaça mesmo e faz luzes quinzenalmente, ou é de esquerda e passa o dia martelando lamentos pesados nas redes sociais. Eu sou do segundo time, mas desde o início avisei aos editores do Balbúrdia que não poderia escrever um texto sobre o evento porque não tinha visto nem a galeria dos artistas. Mas daí, enquanto escutava seu apelo de que fosse um texto pessoal e tals, fiquei pensando que talvez devesse escrever nem que fosse para contar que, num domingo de sol de 2019, esses caras conseguiram ocupar um centro cultural no Capão Redondo com quatro mil pessoas que passaram o dia celebrando a alegria de jogar, desenhar, conversar, ver o trabalho de artistas independentes, ouvir a galera debater assuntos diversos e passear de lá pra cá exibindo fantasias.

Os caras que montaram essa comic con da favela com entrada gratuita, esses caras que, como leria depois na timeline deles, passaram noites em claro organizando tudo isso do nada, esses caras que acabaram perdendo emprego ao organizar esse evento que, felizmente, teve algum patrocínio no final, esses caras da quebrada conseguiram fazer na quebrada um evento pra moçada da quebrada. Tudo isso pra dizer que, mesmo sem ter visto tudo, ver o que vi na Perifacon foi tão emocionante quanto ouvir uma música dos Racionais pela primeira vez.
Por isso acabei encarando este texto. E termino avisando que eles já estão pensando no Perifacon 2 e que já puseram no ar um projeto de financiamento com o qual você poderia pensar em colaborar: benfeitoria.com/vaiperifacon. Vai, Perifacon! Vida longa a esse evento tão maravilhoso!