Há um encontro casual entre duas pessoas e dali surge uma história.
Sem dó, de Luli Penna (todavia, 2017), que nem tantas outras obras, aposta nessa semente narrativa para seu livro. Não é apenas um velho truque da ficção pra nos deixar seguros com a história que brota, mas uma forma de entender que a vida funciona desse processo.
(Ou pelo menos como eu penso na minha.)
Quanto de amor, amizade, loucuragens, tretas e reaproximações eu não vivi/revivi assim, meio que do nada, meio que do “oi você quanto tempo lembra de mim como vai então e aquilo me passa teu contato cerveja agora”.

A obra é disso, tem esse DNA que me leva a misturar realidade e ficção e me bota pra andar pela São Paulo de Luli Penna. Ganho terno e chapéu, ando bem à toa por pensões, pego bonde, acompanho o caso de amor, me encanto com a pororoca entre Eadweard Muybridge e literatura saída da notícia de jornal (que me lembrou Valêncio Xavier, mas que a autora já disse não ser influência para esse trabalho), tudo amaciado no traço de alto contraste entre preto e branco da autora.

Luli estreia nos quadrinhos com um livro de 192 páginas, com impressionante conhecimento de narrativa e de soluções quadrinheiras. Ele conta uma história de amor movida a acasos, mas também o crescimento da cidade, a vida dos imigrantes, um pouco da divisão das classes sociais paulistanas.
Sempre penso no quadrinho como uma sequência de páginas a se dar um jeito nos problemas que não param de pular na frente do autor. Existem, claro, respostas fáceis. Mas meio que não acho muita graça nelas. Apostaria que Luli Penna também não.

Pessoalmente, me encantam (hipnotizam) os quadrinhos em que os trens chegam à Estação da Luz. A fumaça em Sem dó é uma cadeia de círculos, que me lembra também o som pulsante do trem quando se aproxima da plataforma.

Eu sigo dois caminhos narrativos que vão saindo da caixinha de Luli Penna e se costuram de maneira muito perspicaz (sem detalhes para não estragar a surpresa de quem ainda não leu).

Também quase não há balões no quadrinho (eles surgem num momento específico). A maioria dos textos ou são intradiegéticos (fazem parte da realidade retratada no quadrinho) ou entram em cartelas pretas e quadro próprio, referência ao cinema mudo. O cinema, assim como as reproduções de Muybridge, se espalham pelas páginas e botam luz sobre algumas das opções estéticas que constroem esse mundo de tinta preta e espaços brancos.

O traço que opera pelo funcional nunca deixa pra lá a chance de ser elegante. Outra de minhas páginas favoritas são essas com os panos, em que os quadros isolados poderiam muito bem ganhar a marquinha de abstratos, mas pela solidariedade deles na páginas, representam o concreto do trabalho doméstico. Gosto de pensar, entretanto, que as abstrações são os momentos em que Lola sonha.

Não me parece, porém, que o desenho de poucos traços e sem meios tons, e a trama amorosa que enfileira a obra toda tornem Sem dó um quadrinho desses que te ocupam só numa viagem de bonde (ou de metrô). Ao fechar o livro, eu ainda me encontro com a história, vez ou outra, quando a memória dela me chega, assim, casualmente.
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