A obra do poeta, artista visual e tipógrafo William Blake é tão particular que tem exigido constantes recategorizações, propostas e reflexões. Em O Matrimônio de Céu & Inferno, de Enéias Tavares e Fred Rubim (AVEC, 2019), os quadrinistas usam os conceitos blakeanos para criar um thriller em São Paulo.
O primeiro livro da dupla não é exatamente seu primeiro trabalho, pois também produz o quadrinho para internet A Todo Vapor. Separadamente, o incansável desenhista Fred Rubim publicou 4 graphic novels (2 volumes de Cão Negro, com o roteirista Cesar Alcázar; e 2 de Le Chevalier, com o roteirista A.Z. Cordenonsi); Enéias Tavares, o roteirista, é também romancista com algumas obras na bolsa e um dedicado estudioso de William Blake.
Blake poderia ser o santo padroeiro do artista independente, embora “infernal” seja adjetivo mais apropriado a ele. O inglês dizia ter visões e visitar o inferno, e voltar de lá com mensagens e ensinamentos a transmitir por suas gravuras e poemas. Porém, a noção de inferno de William Blake é algo diferente daquela do imaginário cristão. Para simplificar, o inferno é o lugar em que o corpo e o desejo não são separados, que não há culpa pelas vontades da carne, que não existe a culpa por viver o corpo.
O artista inglês publicou parte de sua obra em pequena tiragem, a seu próprio custo e impressa por ele mesmo. Além de desenhar, escrever, montar os tipos e imprimir, Blake ainda coloria cada um dos livros com aquarela e uma técnica que fazia cada exemplar único.
Mas como passar tudo isso para um quadrinho que não quer ser a biografia dele, nem a adaptação do poema O Matrimônio de Céu & Inferno? A solução de Enéias foi entender quais as são as forças e signos em ação na obra blakeana e traduzir esses conceitos para alguma história em que fizessem sentido. A trama acompanha quatro personagens, em que cada um representa um tema na poesia de William Blake. Há também, entre os capítulos, o passeio do poeta por suas visões, com tradução de partes do poema original.
Colocados esses conceitos na mesa, Enéias e Fred se mostram leitores atentos da Vertigo, porque esse material caberia direitinho no extinto selo da DC, seja pela arte e cor, seja pela narrativa e condução temática. Na prática, a estrutura é de thriller policial, com devaneios blakeanos.
Além da boa trama que me segurou no livro até o fim, gostei muito dos entrecapítulos, pois me causou a mesma impressão que tive ao ler a poesia de William Blake: começo a me encantar pelas imagens e pelos sons e em pouco tempo não acompanho mais o fio lógico daquele discurso. Há, porém, um aproveitamento de outra ordem na minha leitura, certa indução ao delírio, e os quadrinhos funcionam como memória de visões que ainda vou ter.
É difícil de explicar, recomendo que leia para ver se o mesmo acontece com você.