[Vem Comigo] Beco do Rosário

Beco do Rosário, de Ana Luiza Koehler (Veneta, 2020)* descreve as transformações urbanas que Porto Alegre sofreu no começo do século XX, e conta como tais transformações implicaram em divisões sociais importantes. O quadrinho, publicado em edição menor de forma independente em 2015, teve apoio do edital Itaú Rumos para essa nova versão.

O estilo elegante de Ana Koehler

Koehler é conhecida pelo seu traço elegante, seu apuro na pesquisa de imagens de época, e nos entrega esse quadrinho bonito, que nos permite questionar o racismo implícito na construção de uma cidade. A história conta a trajetória de quatro jovens, um casal negro (Vitória e Francisco) e um irmãos de rica família alemã (Teo e Frederica). A jovem negra, Vitória, era filha de uma professora, que ensinava português ao pequeno alemão Teo: um entrecruzamento entre grupos sociais distintos que se conhecem pelas letras, pelo trabalho.

E é por questões de trabalho que voltariam a se cruzar, mais tarde, porém em relações distintas: enquanto o jovem alemão se tornaria um dos engenheiros responsáveis pela reforma da cidade, a filha da professora fazia parte do grupo de pessoas que seriam retiradas dali para darem espaço ao “novo”. E Francisco, negro, também amigo de infância de Vitória, quase trabalha para Teo (se não fosse os ciúmes do primeiro quanto ao segundo). Francisco era artesão, sabia construir e criar seus próprios desenhos para as fachadas das casas: naquela época, e vemos isso também no quadrinho, as fachadas – de moldes europeus – eram um comércio importante, e para isso necessitavam de artesãos qualificados. Porém ele mesmo é substituído por um alemão qualquer recém-chegado. Apesar de, no quadrinho, tal troca ter se dado por Francisco exigir demais do próprio trabalho, de seu ofício, sabemos que esse processo de substituição de mão-de-obra de descendentes de escravizados por mão-de-obra europeia se deu como política do Estado brasileiro para evitar empregar ex-escravizados, negros. Política esta que, acompanhada por legislação que prendia pessoas por não trabalharem, contribuiu ainda mais para apartar e estigmatizar a população negra.

Enquanto havia espaços comuns, ainda eram possíveis os encontros. E Ana Koehler nos convida a passear por esses espaços, e nos apresenta os caminhos cruzados que foram cada vez mais se tornando paralelos inconciliáveis.

A praia podia ser de todos

Pelo seu quadrinho, aprendemos as diferentes relações imbricadas nessa cidade, como as discussões entre políticos, engenheiros e os artesãos que moldariam as casas. Aprendemos sobre uma Porto Alegre negra, que foi aos poucos sendo jogada para as periferias, e que não o fez sem resistência, tendo até um jornal dirigido por e para negros.

A jovem Vitória de Beco do Rosário e seu desejo precoce pela escrita

E acompanhamos a história de Vitória, uma mulher negra que queria ser jornalista. Aprendemos que sua família, proprietária de imóveis em uma área bem central da cidade, é obrigada, como tantas outras famílias que moravam ali, a abandonar suas casas, recebendo uma indenização mínima da prefeitura por isso, que não lhes dava condições de continuar morando ali no centro. Outras famílias, que dependiam de aluguel para morar, nenhuma compensação lhes foi dada.

A história que lemos nos ensina que a ideia mesmo de periferia é algo recente e nada natural: pessoas que trabalhavam e moravam nas cidades foram aos poucos jogadas para suas beiras. O caso que mais notório foi o da capital, então o Rio de Janeiro, com o prefeito Pereira Passos e seu “Bota-Abaixo”. Ele importou da França a ideia de abrir grandes avenidas por onde havia pequenos casebres. Porém, mesmo se motivado pelas ideias de “Sanear, higienizar, ordenar, demolir, civilizar”, que de fato ajudaram a limpar a cidade insalubre de doenças comuns como a febre amarela, a ideia de “civilização” implicou expulsar pessoas comuns, trabalhadores, de perto de seus locais de trabalho. Apartou a cidade, e contribuiu com o abismo em que ainda vivemos. Pouca ou nenhuma garantia lhes era dada, e hoje o centro do Rio acumula prédios vazios, edifícios da época do Passos, enquanto a cidade acumula pessoas que dormem em suas calçadas para não terem que pagar os altos preços das passagens.

E a ideia de “ordem” de Passos e outros não trouxeram cidades bonitas: cada vez mais aqueles que têm o capital para construir enchem as cidades de prédios horrorosos e cada vez mais mal-feitos, com pessoas mal-pagas construindo em tempos mínimos (escrevo isso rodeada por uma meia dúzia de construções e mais nas esquinas próximas, que não pararam em nenhum momento durante a pandemia, em meio a vários outros prédios vazios de um bairro universitário). Como disse o amigo @bodinholoiro (abaixo), uma civilização feia, e ainda mais horrorosa se pensarmos em todas as implicações que essa estética dos hiatos sociais nos trouxe.

(Um hiato na cidade, como em muitas cidades, que ainda pune quem ousa atravessar para espaços valorizados – o curta Hiato, linkado aqui abaixo, mostra um grupo de pessoas do movimento dos sem teto no Rio que tentou entrar em um shopping da Zona Sul carioca)

*O livro Beco do Rosário foi gentilmente enviado pela Editora Veneta para o Balbúrdia. Agradecemos à editora pelo envio.
(E nossa Caixa Postal é 5031, CEP 97105-110, Santa Maria/RS).

Publicado por mckamiquase

Maria Clara Ramos Carneiro on ResearchGate https://orcid.org/0000-0003-2332-1109

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