[Vem comigo] Discurso sobre o colonialismo

Discurso sobre o colonialismo, de Aimé Césaire (Veneta, 2020)*, é um texto importante, traduzido por Claudio Willer e ilustrado por Marcelo d’Salete.

Aimé Césaire foi um importante poeta da Martinica, também político que liderou alterações importantes na legislação do próprio país – a França. O texto começa lembrando das brutalidades que seu próprio país cometeu em nome de uma suposta civilização – a própria colonização. O livro se abre com torturas, cabeças decepadas, estupros de meninas, “e na França se aceita isso”.

Césaire escrevia nos anos 1950, mas aqui ainda se aceita isso.

D’Salete joga com alguns heróis colonialistas em territórios africanos: o Fantasma e Tintim

Nesse discurso, Césaire lembra que a colonização passa pela coisificação das pessoas. Um processo que banaliza as mortes, lá longe da metrópole. E esse processo violento de imposição das colônias sobre o outro, lembra ele, pode se voltar contra os colonizadores, como um bumerangue – Césaire não viveu para ver esses tempos de terror em que a França é atacada pelos filhos de antigos colonizados, nesse mesmo 2020. Porém, a Guerra da Argélia estava prestes para explodir (1954-1962).

O termo bumerangue também foi usado por Jean Paul-Sartre, um pouco tempo depois, no prefácio de Os condenados da terra, de Frantz Fanon, outro importante pensador negro que vem sendo resgatado por publicações mais recentes no Brasil. Sartre – que conhecia bem Césaire – falava justamente dessa revolta nas antigas colônias: “Na Argélia, mata-se à vista os europeus. É o momento do boomeramg, o terceiro tempo da violência: volta-se contra nós, atinge-nos e, como de costume, não compreendemos que é a nossa.” (que Rage Against the Machine traduziria para “I’m swimmin’ in half truths and it makes me wanna spit”, Year of the Boomerang, que Gerlach traduziria em sua versão do Fantasma colonizador, Ano do Bumerangue).

Esse momento bumerangue está sempre por vir: esse ano tivemos grandes manifestações como as do Black Lives Matter, somadas às revoltas aqui também, após a morte de Alberto Silveira Freitas por seguranças do Carrefour em Porto Alegre, e de Emily Victória Silva dos Santos e de Rebeca Beatriz Rodrigues pela Polícia Militar do Rio de Janeiro: parece que talvez seja a hora. Nem parece que nesse ano morreram João Pedro em São Gonçalo, João Vitor no Rio de Janeiro, e tantas outras crianças entre as mais de 2 mil que morreram nos últimos três anos no país pela mão de policiais.

Mas não dá para desconstruir meio milênio de explorações em apenas alguns levantes. Desconstrução (termo do franco-argelino-judeu Derrida) é uma operação que serve para mostrar o que está naturalizado nos discursos, por exemplo, a violência inerente que a língua e as instituições reservam aos negros brasileiros.

E se aceita isso, como se fosse natural.

Descontrução não é uma ação individual e simples de se fazer.

Ninguém consegue se “desconstruir”, expressão banalizada que esconde uma desculpa para continuar sendo racista. Desconstrução é uma operação do pensamento, envolve reflexão constante e profunda sobre os discursos e posições sociais. Mas para de fato haver transformação de sociedade, são necessárias ações coletivas. Em A marcha, sobre o qual escrevi aqui, aprendemos algumas dessas ações. No Brasil de 2020, tivemos um número maior de pessoas negras eleitas para vereanças e prefeituras, são outras opções de ação. Ainda é pouco, mas são caminhos possíveis. O legado de Marielle Franco vai sendo aos poucos estendido, mesmo mais de 1000 dias após a sua morte sem que a gente saiba seus mandantes.

Césaire ainda narra as destruições às culturas locais, e as tentativas de justificar a colonização contra povos aparentemente pacíficos, apagando até as histórias de suas revoltas e resistência à crueldade da colonização. Ele comenta como do lado de lá da Guerra Fria, na União Soviética, a colonização foi outra: acrescentadas ao estado como repúblicas autônomas, as nações reunidas sob a sigla da URSS teriam, ao menos, suas culturas e línguas preservadas. Sua sugestão de ver o exemplo dos comunistas era, antes de tudo, uma denúncia contra a falsa consciência burguesa que preferia não ver, deixar para debaixo do tapete as tragédias operadas nas colônias.

Um fato curioso e não menos simbólico, que esse livro me fez lembrar: até uns quinze anos atrás, existia um curso de francês especial para quem quisesse se aprimorar em língua francesa. Uma das disciplinas se chamava “civilização francesa”. A mocinha aqui, então jovem estudante de Letras-Francês, chegou a fazer um ano do curso pictórico, em que aprendíamos os nomes dos reis e a formação das principais cidades. Poderia se chamar “história da França”, mas o nome era esse mesmo, “civilização”. Mesmo com a bibliografia de importantes historiadores que desmistificaram a história da França (Le Goff, Duby), o nome continuava “civilização francesa”.

Quando comecei a dar aula de francês, educadores já se mobilizavam pelo fim de nomenclaturas bizarras assim: o termo vinha dos primeiros livros didáticos de francês, elaborados com a crescente demanda de aprendizagem da língua, sobretudo nas colônias francesas – que aprendiam, em manuais vindos da metrópole, que eram todos “descendentes de gauleses”, conforme se conta a anedota. O velho Mauger (primeiro grande autor dos manuais de língua francesa) tinha o livro Cours de langue et civilisation françaises, ou seja, curso de língua e civilização francesas, em livro contemporâneo ao discurso de Césaire. Este, junto do senegalês Leopold Senghor, já tinha concebido o conceito de negritude, e renovavam a língua de seus colonizadores com uma literatura nova. Porém, a chegada desses autores ao panteão da literatura de língua francesa é muito recente e apagada. Inventariam até um termo, mais tarde, “literatura francófona”, para não misturar a literatura feita em francês nas colônias e ex-colônias e à literatura francesa produzida por Jean-Jacques Rousseau (suíço), Marguerite Duras (nascida na então colônia da Indochina), Samuel Beckett (irlandês), Albert Camus (nascido na então colônia Argélia), Marguerite Yourcenar (belga) ou Eugène Ionesco (romeno).

Coincidentemente, os nascidos nas colônias que escrevem literatura francesa são todos brancos, porém Césaire, Édouard Glissant, Maryse Condé, negros e de territórios franceses (Martinica e Guadalupe), continuam apartados da literatura francesa. (Eu, que terminei minha graduação em 2005, só fui conhecer mais autores de língua francesa não brancos com a ajuda das minhas queridas alunas da Universidade do Estado da Bahia e minhas colegas que me apresentaram a Condé, Dany Laferrière, Senghor, Césaire).

Tivemos que chegar ao século XXI para trocar termos como civilização, postura que pressupõe sobreposição de uma cultura por outra, por interculturalidade: aprender uma língua é aprender uma cultura, mas isso se dá pela interferência de uma na outra, por aproximações, não por exclusões.

Ao mesmo tempo, em termos de tradução, discute-se a importância de uma tradução ética, que evite naturalizar ou falsificar elementos em uma história de outra cultura para a nossa cultura, por exemplo: mudar nomes de lugares, apagar ou entortar frases para que caibam em nossa cultura sem nenhuma interferência. A tradução de Willer e as notas e acréscimos de Rogério de Campos em Discurso sobre o colonialismo são exemplos dessa tradução ética: nos deixam sentir o gosto das expressões em francês, trazendo-nos o sentido do texto ao mesmo tempo em que nos revela a letra. As muitas notas que ocupam às vezes um terço da página do livro, também nos permitem conhecer essa cultura e essas histórias que nos são estrangeiras. Elas nos lembram que aquilo é uma tradução, e não nos impedem de lembrar de paralelos com nossa própria situação de ex-colônia.

***

No dia 20 de novembro de 2020, acordamos com a notícia de (mais um) homem negro morto, sufocado por seguranças do Carrefour. Agora era uma empresa francesa que ainda aceitava isso. E não era a primeira vez. Nesse dia, tínhamos uma reunião do nosso grupo de estudos de pesquisa teoria e análise de quadrinhos (apelidado GPQ), que vem acontecendo online durante todo o ano de 2020. Um dos membros do grupo, o querido mestrando em comunicação Vitor Bittencourt, chegou da manifestação que tinha acontecido no Carrefour do centro da cidade em que moramos, Santa Maria (RS). Outro membro do grupo, o muralista e quadrinista Braziliano, acabou ficando por lá. Com essa pauta tão mais urgente, mudamos a discussão do dia para vasculhar as estantes à procura de livros sobre a questão do racismo. E aproveitando o ensejo do texto de Césaire, vamos listar alguns livros para a gente tentar ser cada vez mais antirrascista.

São quadrinhos que estavam aqui à mão, em que o racismo está presente e é questionado, direta ou indiretamente. São poucas obras aqui, e você pode ajudar a aumentar essa lista.

20081121-A revolta da Chibata web.jpg (460×599) | Chibata, Revolta,  Quadrinhos

Chibata! – João Cândido e a revolta que abalou o Brasil, de Hemeterio & Olindo Gadelha, Conrad, 2008. Conta o momento histórico em que marinheiros, da mais baixa escala da marinha, se revoltaram contra as más-condições de trabalho, liderados pelo homem negro João Cândido.

Contos dos Orixás | Amazon.com.br

Contos dos orixás, de Hugo Canuto (2017), com tons de aventura à la Jack Kirby, o livro nos apresenta adaptações de histórias da cultura Yorubá para os quadrinhos.

Encruzilhada | Amazon.com.br

Encruzilhada, de Marcelo D’Salete. Publicado primeiramente em 2011 pela Barba Negra e em 2016 pela Veneta, junto da curta Risco (que saiu anteriormente pela Narval). D’Salete talvez dispense apresentações: Angola Janga, possivelmente seu livro mais importante, conta a história de Palmares e ainda é acompanhado por uma extensa bibliografia e elementos factuais que fazem da obra uma importante fonte para quem quer se educar antirrascista. Já Encruzilhada acontece em um tempo mais próximo de nós, e em uma de suas histórias ele se inspira de um caso bem comum: um homem espancado em estacionamento de um Carrefour, quando tentava abrir seu próprio carro. Como em Beco do Rosário, outra obra para ser antirracista, ele nos mostra como a cidade é racista, e cria estratégias racistas para dividir brancos e negros.

Livro: Carolina - Sirlene Barbosa e João Pinheiro

Carolina (Veneta, 2016), de Sirlene Barbosa e João Pinheiro é a biografia de uma de nossas mais importantes escritoras negras, Carolina de Jesus. Importante, também, falando de cidade, é o quadrinho que Pinheiro escreveu esse ano, sobre a quarentena vista de sua quebrada.

Na Quebrada – Quadrinhos De Hip Hop | Amazon.com.br

Na quebrada: quadrinhos hip hop,** é uma antologia organizada pela Editora Draco (2019), que convidou autores como Pinheiro e o Braziliano, e introdução do historiador Alê Santos. Relaciona a música e a questão da periferia, como arte e espaço se conversam.

Carne viva (UFPel, 2018) é um livrão em quadrinhos contando a história de um time de futebol, o Brasil de Pelotas, do Rio Grande do Sul. O livro de André Macedo conta a história não apenas desse time, mas de toda a constituição da cidade, grande polo das charqueadas, cheio de famílias abastadas, com uma importante população negra. E vai mostrando o racismo que ainda atravessa as relações entre as pessoas…

Prof. Fall (Veneta, 2020), é adaptação em quadrinhos por Ivan Brun do romance de Tristan Perreton, e foi traduzido por mim. No livro, acompanhamos as disputas de território sobre as colônias portuguesas de Moçambique e Angola, e os diamantes de sangue: guerra sangrenta pelos minérios da região, que praticamente dizimou populações. Algumas pessoas sobreviventes dessa guerra iam parar na periferia de Lyon, e o protagonista acabava contaminado pela alma de um traficante português de diamantes e pessoas, assombrado por seus crimes. Ao mesmo tempo, é uma reflexão sobre os espaços urbanos e a obsessão de arquitetos e urbanistas por cidades modelo, de linhas retas, a cidade como idealizada e, ao mesmo tempo, opressora.

Strapazin 130, 2018

“Estudos de iconografia para uma anáise socio-econômica da produção de quadrinhos hoje”, de Rafael Coutinho (na revista Strapazin #130, 2018), é uma verdadeira cartografia sobre as diferentes perspectivas de um autor de quadrinho diante de questões de raça, gênero e classe. Usando muitas frases ouvidas por aí, Rafael foi desenhando para a gente esse infográfico de como funciona o racismo, o machismo, a questão de classe, de idade, e como isso afeta a produção. Explica bastante o fato de termos tão pouco autores negros sendo lidos e publicados. Uma verdadeira encruzilhada de fatores que vai deixar de lado quem está à beira do sistema social.

Nobu Chinen media bate-papo sobre o protagonismo negro nas HQs - Jornal  Nippak

O negro nos quadrinhos do Brasil, fruto da pesquisa de Nobu Chinen (Peirópolis, 2019) sobre a história de personagens negros no país, é de extrema importância para o assunto, com um recorte gigante, desde as primeiras publicações.

Nem todos esses livros foram feitos por pessoas negras: ora, a luta antirracista não deve ser apenas de pessoas negras, ela concerne a todos. E quem é branco nem imaginamos o cansaço que é ter que escrever o tempo todo sobre o fato de ter nascido negro.

Para saber mais sobre pessoas e culturas negras no meio dos quadrinhos, busque conhecimento: no youtube a Andreia Fernandes vem animando o Traços Negros. As matérias da Ponte Jornalismo têm dado destaque especial à questão negra. Tem mais, muito mais, aqui é apenas um mínimo recorte – poste aí seu canal favorito para se informar.

*Livro gentilmente enviado para o Balbúrdia pela editora Veneta.
** Ganhamos de presente do Braziliano.

Publicado por mckamiquase

Maria Clara Ramos Carneiro on ResearchGate https://orcid.org/0000-0003-2332-1109

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