Seguimos na peleja com a pergunta “Quadrinhos abstratos?”, sem saber muito bem até quando, sem saber direito o que vem depois, mas confiantes que o movimento envolvido tá bonito de se ver. Sugiro com honestidade a leitura das Parte 1 e Parte 2, embora desconfie que essa aqui vai se sustentar sozinha. Vamos ver?
Anteriormente, em A consciência de Zeni:
– O autor assumiu que não sabe aonde esse texto vai;
– O autor lida com definições de abstrato da história da arte para então voltar aos quadrinhos e ver se fica tudo bem;
– A definição (com problemas) é: abstrato se opõe a figurativo. No primeiro, as linhas, pontos, cores e formas não querem representar o mundo observável do leitor e são toda a graça da coisa; na última, as linhas, pontos e formas buscam apresentar algo do mundo ao leitor (isso tá mais bem explicado no texto anterior da série).
Bem, você voltou. Ergamos loas e fumos em honra de leitores que chegam aqui comigo. E levem meu abraço sincero também, claro. Depois desse rasgo de simpatia, vamos lá: se falei de abstração antes me apoiando nas artes visuais, fui dar uma olhada em que “literatura abstrata” poderia render.
Primeiramente, uma explicação: não acho que dê pra pensar os quadrinhos metade pelo viés das artes visuais e metade pela literatura, só por que, né, desenhos + palavrinhas e tal. Os quadrinhos não são um híbrido que surge a partir da junção de imagem e texto, mas uma linguagem em que os enunciados de imagens e textos se encontram[1] e produzem um sentido a partir desse encontro.
(Meu palpite é que a ideia de parear as histórias em quadrinhos com artes visuais e literatura seja aquela viralatice típica de querer alçar os quadrinhos a postos mais nobres e, desse modo, valorizar a arte tão desprezada[2]. Oh, dó!)

Mas então por que vou lá e corro atrás das artes visuais e da literatura? Bem, porque as artes visuais tem um longo enlace com a produção abstrata e achei um bom manancial de reflexões ali. Já a literatura compartilha com os quadrinhos a ideia de mercado editorial, uma noção de autor e de cânone que me parecem bastantes similares. Sem falar que é interessante ver que de forma outra/os linguagens/meios expressivos tratam a abstração (isso quer dizer que talvez falemos de cinema abstrato e otras cositas por aqui ainda).
Tá, isso explicado, adiante.
As referências que aparecem sobre literatura abstrata são normalmente confusões com surrealismo, textos obscuros (quase sempre barrocos tardios) ou descrições de substantivos abstratos usando mais substantivos abstratos. Todas elas são insuficientes na nossa investigação: a primeira com denominação incorreta, a segunda chama de abstrato o que é difícil de apreender (falei disso na Parte 2) e outra que trata apenas de conteúdo e não da forma.
Além disso, encontrei dois movimentos que se intitulam Literatura Abstrata.
Um deles surgiu em Salamanca, na Espanha em abril deste 2016. Três membros (Alba Blanco, Alberto Blanco Rubio e José Luis Blanco) foram a público anunciar o movimento, que quer novos colaboradores (tem página no Facebook) e se propõe a uma literatura concisa e de essências, com poucas palavras, que pede participação ativa do leitor:
“No tiene normas fijas ni líneas rojas, simplemente sentido común. No tiene escritores, solo escribas y es el lector quien da vida, olor y sabor a esa esencia. Es interactiva a través de las nuevas formas de intercomunicación. Es inclusiva y no excluyente. Anima a unirse al resto de Artes”.
Añaden que “es el estilo literario de la acelerada vida moderna. Tiende a la simplificación. Es anti-burocrática, tanto “papeleo” es fruto de la desconfianza humana. Es reivindicativa: Pedimos ocupar las plazas y las calles, ir a las exposiciones, al cine, al teatro, a los conciertos de música, al campo, y por eso reclama abrir todos los espacios públicos y privados para acoger tanta creatividad escondida.” (Salamanca 24 Horas)
A proposta deles é popularizar a parada e incluir o leitor como um igual (tem até o papo de serem escribas e não escritores), daí vem o lance da simplificação que eles falam. Não consegui entender pelo discurso (não li a obra) exatamente o que tem de abstrato na proposta, mas apostaria na ideia de “aumentar participação do leitor”, que é uma ideia bastante comum quanto à abstração, que ela é aberta a interpretação (mas qualquer texto, até lei, é).
Esse grupo de Salamanca se diz o primeiro a lançar um livro de literatura abstrata. O que é discutível não só teórica, mas cronologicamente, já que David Quiles Guilló, de Madri, organizou em 2015 um coletânea de textos chamada Abstract/Exit e também diz cometer literatura abstrata. A definição dele é:
“Coger todos los elementos del lenguaje escrito para generar otro tipo de lengua. No es poesía experimental, tampoco un experimento dadaísta. Puede ser un nuevo género literario. Parte de la pintura. Intento llevar la literatura al campo de la creatividad. ¡Pero no sale algo que no tiene sentido! Es leer palabras, reconocerlas, más que leer, reconoces las estructuras con las que el autor se ha divertido trabajando” (La Razon)
Esse tio de Madri é mais ligado à linguagem e tem um trabalho que dá relevância ao suporte, chama atenção pra ele, num paralelo possível com o gesto das artes visuais abstratas. Ao se propor voltar à palavra, ele volta ao elemento de composição da literatura.

E tem mais: a obra Esoplots, que Quiles Guilló chama de literatura, me parece em tudo com um livro ilustrado (com desenhos abstratos de Protey Temen). Ou seja, há uma aproximação com os quadrinhos ao usar um recurso expressivo de texto e imagem. Mas não nos aninemos demais.
A exploração formal do espanhol parte da literatura e calha de avistar os quadrinhos; não torna as HQs em literatura ou a prosa de ficção em história em quadrinhos. O trabalho de Quiles Guilló tem muito mais a ver com Valêncio Xavier e W.G. Sebald (ou livros infantis ilustrados) do que com Will Eisner.
Há outra entrada literária pra “abstrato” e é nos poemas. A poesia não raro assume um corpo visual, sendo difícil diferenciar artes visuais de literatura (um exemplo seria a Antologia Astratta, do italiano Roberto Demarchi). O termo foi cunhado pela poeta Edith Sitwell, que não pensava em poesia visual e pretendia falar sobre um poema que teve suas palavras escolhidas pela “aura” e não pelo sentido.

Em uma tentativa de unir essas propostas, aparece que abstração na literatura trata muito menos de criação de sentido e muito mais de uso da matéria literária (menos o grupo de Salamanca que delega a multicompreensão acima de tudo), o que vai ao encontro da definição usada até aqui de que o abstrato lida com a matéria base da forma da linguagem. No caso da literatura, a palavra.
Mas isso não é algo tão elucidador assim. Os estudos formalistas russos do começo do século 20 já propunham que a diferença da linguagem cotidiana e da linguagem poética é que a segunda sempre se volta pra dentro, pra si mesma, enquanto a linguagem do dia a dia aponta pra fora, pro mundo.
Misturando tudo, o abstrato literário, nesse caso, pode ser pensado como um texto em que a linguagem poética é testada ao seu limite. Aí me toca a pensar o Finnegans Wake, de James Joyce, como um romance abstrato.
Hey, calma entonces! Não tô falando que o livro é literatura abstrata, mas acho que talvez conceitualmente possa se brincar um pouco com essa ideia. Então, vamos ver o que há com ele.
Finnegans Wake é o último livro de Joyce que tem uma radicalidade na audaz linguagem proposta. Toda a experiência romanesca do autor em Ulysses foi dedicada a novas possibilidades dentro da estrutura do romance. Em FW, o irlandês resolve implodir o conceito de romance.
Ninguém sabe o enredo direito, mas há consenso entre críticos que se trata de um sonho, vivido por personagens mutáveis (seria melhor dizer arquétipos), sem um espaço constante ou reconhecível (espaço onírico), que vivem em um tempo condensado, em que figuras históricas e literárias de qualquer época podem aparecer (ao mesmo tempo que o livro é cíclico e pode ser iniciado de qualquer parte)[3], restando intacto apenas o narrador.
No nível do enunciado verbal, muitas junções de palavras (algumas só revelam sentido lidas em voz alta), criações, empréstimos linguísticos de outros idiomas (há quem diga que o livro foi escrito em inglês finneganês), mudanças sintáticas, personagens que a presença só pode ser percebida por suas iniciais como letra inicial das palavras da frase (HCE, ALP).

Um texto de ficção que se propõe a reduzir a importância do enredo e das peripécias (Samuel Beckett, em outra chave formal, vai seguir os passos de seu mentor Joyce), tende a ser uma obra que se detém nas questões formais. Mesmo um caso extremo como Finnegans Wake, entretanto, pela própria característica da palavra, não consegue somente se debruçar sobre a palavra em si, estando a palavra, ainda que de forma obscura, a manter relação com o mundo.
Ou seja, se seguirmos por essa ideia de que abstrato se volta à forma e considerarmos isso de modo absoluto, não é possível, por definição, um texto abstrato e, consequentemente, uma literatura abstrata. A menos que validemos a abstração parcialmente.
Resumindão: não vai ser pela palavra que teremos abstração nos quadrinhos. Será mesmo? Continuamos nossa investigação na próxima parte da série. Até lá!
[1] Ocasionalmente, algum deles não aparece, e é uma marca zero. Ele está lá por não estar. A ausência de um elemento que a nossa expectativa de leitor coloca ali acaba também sendo significativo.
[2] Dá uma sacada nos livros teóricos do Will Eisner, por exemplo.
[3] Finnegans Wake começa no meio de uma sentença, que é sequência da última frase do livro.
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