Estreou, no último dia 19, o documentário Laerte-se, dirigido por Lygia Barbosa da Silva 24e Eliane Brum – uma produção totalmente brasileira para a Netflix sobre uma das quadrinistas mais talentosas e famosas do Brasil nem tão varonil.
Não tem spoiler aqui: o filme é uma conversa bem lúcida dentro da casa e em outros espaços da quadrinista, que se desnuda (até literalmente) para a câmera. Tudo intercalado com imagens de arquivo pessoal, de entrevistas, de tiras contando a transformação do Laerte em a Laerte.
A conversa parece que começou em 2014 – ano da exposição dedicada a ela no Itaú Cultural (Ocupação Laerte, catálogo aqui). A conversa acompanha Laerte na manicure, na exposição, no noivado e casamento da filha, na visita ao filho e a visita do neto, desenhando nus.
Fiquei emocionada assistindo, Laerte é de uma inteligência ímpar, sabendo politizar seu corpo, e nos ajuda a desalienar dos nossos. A emoção também veio de relembrar os fatos narrados e saber como é difícil contar assim, para todos nós. Comecei uma relação epistolar com Laerte desde que publiquei (e ela me disse que leu!) esse texto em meu blog, comentando sobre seu recital inusitado, suas meias coloridas e o par de tênis rosa, que ela vestia a primeira vez que a vi (no lançamento dos Piratas, pela Devir, em 2007 ou 2008, na Livraria da Travessa, em Ipanema no Rio); a descrição da primeira depilação foi contada por escrito e quase passou despercebida em outro livro, o Vida Boa, de Fabio Zimbres. É o prefácio do livro de tiras, Zimbres tinha pedido “qualquer texto”, e Laerte nos entregou seu primeiro anúncio de que queria mudar de corpo. Aos poucos, Laerte fazia subir dos pés à cabeça o feminino sobre seu corpo, entre meias, minissaias, brincos, até deixar os cabelos long as God can grow it.
O documentário também bisbilhota a mão que desenha, essa “mão mágica […], ou algo entre a mão e o cérebro que é mágico” (como o próprio filho, Rafael Coutinho, contou, semana retrasada, para os meus alunos na faculdade). É de uma delicadeza singular, pois generosa em nos contar sua história, sem pretensão de se impor: uma fala amorosa, que nos abraça e convida a se laertizar, sem culpa.
P.S.: O documentário parece ser mais para quem não conhece a Deusa dos quadrinhos nacionais, mas para pessoas como a minha avó, que virou fã recentemente pelo programa Transando com Laerte aprender que essa senhora é, também, uma Deusa dos quadrinhos nacionais. E é para quem conhece a Deusa dos quadrinhos nacionais saber que ela também é uma senhora, que cuida da casa e cuida de si e dos seus.
P.P.S.: Também tem texto meu no catálogo da Ocupação Laerte. E meio me acharam aos 44’22” do doc, durante a exposição!