Apesar do título apontar para uma história entre amantes, um amor romântico, há um desvio. Em Por Muito Tempo Tentei me Convencer de Que te Amava (Balão Editorial, 2018), Thiago Souto te convida para passear pela avenida Paulista, em São Paulo, no domingo, quando a rua está aberta para pedestres, que a ocupam com seus corpos em movimento.
Gosto de andar por aí com os quadrinhos, ou melhor, pelos quadrinhos: já fiz uma ficcio deriva com Fachadas (Lote 42, 2017), de Rafael Sica e nunca escondi de ninguém minha predileção pela obra de Jiro Taniguchi, um autor passeador. Mas antes da ficção, vamos ao mundo real.
Minha vida toda, gostei de caminhar, seja para chegar às urgências da vida, seja para ocupar a paisagem em movimento. Sempre que viajo, só me sinto no lugar ao andar pra lá e pra cá (no passado com mapas de salvaguarda, hoje com o Google Maps). E quando morei em São Paulo, sempre foi massa andar pela Avenida Paulista, tanto que duas das minhas memórias mais carinhosas de meus últimos dias na cidade são uma passeata contra o Temer que começou ali e um caminhar bem à toa pela rua (até sinto o calor do asfalto na sola dos pés ao lembrar), num desses domingos em que a Paulista está aberta para os pedestres, para seus passos, para seus descaminhos (acho que foi uma deriva ali, mesmo sendo pouco político pros situacionistas).
Mas vamos falar de ficção, do passeio pelo qual Thiago Souto nos conduz em seu Por Muito Tempo Tentei me Convencer de Que te Amava.
Um desenho solto (sem trocadilho, pelamor) e ao mesmo tempo com alto grau de representação da Paulista é por onde vamos ficcio derivar. Se você já passou pela rua nos domingos, o artista desenhou sua memória da avenida; se você ainda não conhece, eis uma apresentação: vai ser bem parecido com o que vê no livro do Thiago.
O personagem em preto passeia pelo branco e levado pela mão no magenta. De alguma forma, a abertura da arte, o inusitado do magenta e a composição caótica entre texto e imagem abrem vielas onde cabe certinho a imaginação e a memória do leitor (se é que há tanta diferença assim, entre as duas).
Encaro a obra como espécie de ensaio sobre a linha: ir de um ponto a outro, e marcar a trajetória entre esses pontos, mas essa trajetória é humana; são humanos em ação com outros humanos, em algo construído por humanos, embora o concreto e o vidro e a hiperurbanidade sejam símbolos do progresso desumanizado. Quando o prefeito Fernando Haddad abriu a Paulista para nós, talvez ele não soubesse quantas possibilidades colocariam suas bancas a cada poucos metros, quantas pessoas andariam com os cachorros, quanta vida estaria disponível ao olhar.
E se tem uma coisa que a TV de reallities nos ensinou que ver a vida de alguém é se sentir vivo junto, mas falta a amplitude de ver passar. E o ensaio em quadrinhos de Thiago Souto, consegue nos dar essa tal amplitude de flanar, sem o vento, os murmúrios e os cheiros da rua, mas, pelo menos, você não precisa esperar o domingo chegar.
Talvez Por Muito Tempo Tentei me Convencer de Que te Amava seja muito pessoal, talvez seja ficcional, mas é, sim, um pouco o meu passeio naquela rua, sem nunca ter deixado de ser o do Thiago.
Aqui você consegue acompanhar o processo do Thiago com seu editor, Ramon Vitral.
Agradeço à Balão Editorial pela oferta do livro.
PS: um AntiCast pra você ouvir sobre deriva e psicogeografia.
Outro PS: texto com muita informação sobre deriva na avenida Paulista.