[Vem Comigo] O Relatório de Brodeck

Em uma pequena aldeia na fronteira com a Alemanha de país não especificado, um homem precisa tornar normal por meio de suas palavras um ato bárbaro e cruel. Essa é a história de O Relatório de Brodeck, de Manu Larcenet (Pipoca & Nanquim, 2018, tradução de Pedro Bouça).

Esse livro é aquele tipo de adaptação literária em quadrinhos que pouco vai ser usado para apontar à obra literária. Com O Relatório de Brodeck a vontade do leitor não é pensar que aqui há uma homenagem ou uma introdução ao romance de Philippe Claudel (inédito no Brasil), nem um desdobramento mercadológico pra fazer uma marca já conhecida virar outro produto e assim arrecadar mais, como são tantas as adaptações por aí.

O livro de Larcenet se pareia às grandes adaptações que valem por si mesmas como histórias em quadrinhos independentes, em certa medida, de sua fonte – casos de A Cidade de Vidro, de Paul Karasik e David Mazzuchelli (Via Lettera, 1998, tradução de Jotapê Martins) a partir de Paul Auster, e Kaputt, de Eloar Guazzelli (WMF Martins Fontes, 2014) adaptado de Curzio Malaparte.

Manu Larcenet opta por um livro horizontal, em que sua arte preto e branco pode explorar muito bem a paisagem e o ambiente rural da vila onde a história acontece. Esse ambiente é fundamental para a história, pois fora desse espaço, os desdobramentos seriam outros e também meio que reforça ao leitor que se trata de algo acontecido nesse lugar, nesse cenário. Adepto do estilo realista, o francês conduz trama que alterna passagens com muito texto e várias páginas silenciosas, o que gera o ritmo pulsado da história. A trama gira em torno de crueldade, xenofobia e incapacidade de lidar com a memória coletiva.

Há um grupo que comete um ato bárbaro, que sabe que deve se envergonhar disso, mas a memória jamais os abandona, o que os leva a nova ação violenta na tentativa de que a memória seja apagada, ou melhor, reescrita. De forma pouco provável, a solução de tudo passa pela criação de um relatório em que a verdade lhes seja favorável e que o mundo possa ser rememorado a partir da letra fria da página e não do vigor do arrependimento e da vergonha. A palavra, capaz de eternizar os fatos, vai ser usada para que só se torne fato o que for do desejo daquelas pessoas incapazes de viver com o horror do que fizeram, com o quão terrível se descobrem capazes de ser.

 

Qualquer relação que se possa fazer com termos em voga hoje como “pós-verdade” e “fake news”, me parece, deve ser feita. O que Larcenet constrói em sua história em quadrinhos é a relação bastante clara entre essa ação naquele vilarejo, que alcança uma centena de pessoas, se tanto, e a ação autoritária do governo nazista poucos anos antes, durante a Segunda Grande Guerra. Mas o que se passa ali está diretamente ligado a desumanização e crueldade autoritária e, ao mesmo tempo, independente dos nazistas, tem vida própria. A crueldade que sabemos dali não é arte exclusiva dessa pequena localidade, essa crueldade se move com o humano para onde esse humano for.

O escolhido para redigir o relatório é o Brodeck do título, pois dizem que ele leva jeito com as palavras. A verdade, porém, é que o escolhido para relatar é aquele que aceitou se passar por cachorro no campo de concentração, em nome da sobrevivência, o escolhido é alguém que tem menos ligações com o vilarejo que os demais – e nada disso é à toa. Mais de uma vez podemos ler no caderno secreto de Brodeck que ele sabe que não fez parte da turba criminosa por mero acaso, porque alguma coisa o colocou como vítima ou afastado dos eventos. Ele está convencido que nada teria sido diferente se estivesse no lugar do crime, que nada faria.

Essa extrema humanização da consciência de Brodeck, da inutilidade de um indivíduo quando a vontade do grupo derruba a razão, da plena noção da incapacidade de agir, me coloca não só ao lado desse personagem em meio ao inverno de sua aldeia, mas também penso em mim mesmo diante do inevitável terror do grupo, capaz de qualquer monstruosidade, desde que animado o bastante para isso. Há também a demonstração clara que a arte pode trazer lucidez e confrontação, mas nem sempre se está preparado para enfrentar o pior de si mesmo.

Esse questionamento sobre ética em uma pequena localidade me lembra do enorme filme de Michael Haneke, A Fita Branca (2009). O filme fala das origens do abjeto no comportamento humano, e como a semente do autoritarismo, do abuso e do ódio nunca deixa de ser plantada e colhida; já o quadrinho trata de como as ideias persistem nos comportamentos, mesmo daqueles que foram prejudicadas por ela. E me lembro de Walter Benjamin, de “nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie”.

Disso tudo somos feito e uma obra da cultura que nos lembra da nossa capacidade de barbárie.

Agradecimentos à Editora Pipoca & Nanquim que nos ofereceu o livro.

Publicado por lielson

Francisco Beltrão (1980) - Curitiba (2000) - São Paulo (2011) - Salvador (2017) - São Gonçalo (2018) - Santa Maria (2019).

2 comentários em “[Vem Comigo] O Relatório de Brodeck

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