[Cuba Liber] Minha vertigem

Então, a DC decidiu que vai descontinuar o selo Vertigo a partir de 2020.

Então, como contou o amigo Télio Navega, eu tenho o logo da Vertigo tatuado no braço.

Então…

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Eu entrei com 5 anos de idade na década de 1980, aquele mundo sem celular e internet que parece cada vez mais distante e menos real. As opções de brincadeiras e diversões sempre foram muitas, mas no quesito “consumo nerd”, eu estava limitado à tv e aos quadrinhos. Cinema, pra mim, era um luxo que só acontecia muito de vez em quando.

Quadrinhos eu tinha aos montes e pirava nos formatinhos da editora Abril. Tenho ainda as primeiras edições do Homem-Aranha, Hulk, Batman e Super-Homem que marcaram o monopólio da Abril com a Marvel e a DC ao longo de toda a década de 1980. Daí eu era criança e lia e relia esses gibis, sem muito compromisso, sem muito apego à tal “cronologia” (que é a sequência da “novelinha” da vida dos personagens de gibi).

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Quando eu entrei na adolescência, coisas tipo Watchmen e O Cavaleiro das Trevas caíram em cima de mim e desgraçaram minha cabeça. Um aspecto desses gibis que precisa ser considerado é que eles não eram apenas obras fechadas em si, que qualquer pessoa pode ler de boas. Esses dois quadrinhos, especialmente, pegavam o leitor criança (eu) e escancaravam para ele as possibilidades do meio, dos temas a abordar, conceitos a desconstruir e modos de narrar.

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Watchmen e O Cavaleiro das Trevas (especialmente este) foram aquelas obras que realmente me transformaram, me empolgaram e contaminaram. E logo depois veio o Sandman.

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Eu achei as cinco primeiras edições da Globo numa caixa de papelão de liquidação em uma banquinha de rua (outra coisa que era muito comum e está virando lembrança).  Li tudo numa tarde e esse sim foi, sem exageros, o meu quadrinho da vida. Comprei tudo o que podia a respeito da série, busquei revistas importadas, publicações nacionais, tudo o que conseguia encontrar. Cheguei a conseguir um autógrafo com o próprio Neil Fucking Gaiman quando veio ao Brasil pela primeira vez, em 1995.

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Lógico que tinham outros quadrinhos ao redor desse. O Homem-Animal do Grant Morrison, o Monstro do Pântano do Alan Moore, o Hellblazer do Jaime Delano. Eram coisas muito bacanas, que mostravam que tinha algo diferente sendo feito, ainda que, na época, talvez eu não soubesse explicar essa diferença. Mas todos esses gibis tinham esse algo diferente e eram a Vertigo antes da Vertigo.

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A Vertigo aparece mesmo em janeiro de 1993. Tenho ainda a edição especial de preview, que custou 75 cents, apresentando a proposta do selo e os novos lançamentos Death: the high cost of living #1, Sandman Mystery Theatre #1, Kid Eternity #1, Sebastian O #1, Black Orchid #1, Mercy e Enigma #1.

         

Mas outras seis séries que já circulavam simplesmente começaram a ostentar o selo Vertigo na capa, como as edições Sandman #47, Animal Man #57, Swamp Thing #129, Doom Patrol #64, Shade, the Changing Man #33 e Hellblazer #63. E esse era o lance: esses seis títulos tinham algo mais, algo em comum que supostamente os diferenciava dos títulos “normais” e que o selo Vertigo buscava reunir. Agora, o que exatamente era esse algo mais?

De modo geral, o pessoal definia a Vertigo como o “selo adulto” da DC Comics. O que eu acho muito engraçado, porque no início a maior parte das histórias era de personagens mágicos ou com super-poderes e esses temas não eram “coisa de adulto” na época.

Vou tomar o Sandman como base pra ilustrar. Pra começar, é um gibi de super-heróis.

Isso dá até alguma polêmica entre fãs da série, mas o Sandman é e sempre foi um gibi de super-heróis da DC Comics. Nas seis primeiras edições o personagem menciona a Liga da Justiça, interage com Senhor Milagre e Ajax, o Marciano e confronta o insano super-vilão Dr. Destino (Dr.  Destiny, da DC. Não confundir com o Doutor Destino – Doctor Doom da Marvel). Em edições posteriores, encontramos a super-heroína Moça-Elemento (Element Girl, não sei a tradução), o Sandman super-herói de Jack Kirby, a Fúria da Sociedade da Justiça (que acaba sendo mãe do “sucessor” de Morpheus)… enfim, até no funeral do personagem, nas últimas edições, aparecem Batman, Super-Homem e Darkside como figurantes.

Acho legal falar esse tipo de coisa porque muita gente fica meio bolada ou surpresa de lembrar isso: Sandman é um gibi de super-heróis. Mas o estranhamento dessa ideia vem justamente por causa daquele algo a mais.

Esse algo a mais estava nas histórias do Alan Moore, Grant Morrison, Jamie Delano. Não eram só autores “britânicos”, eram autores que realmente colocavam nos super-heróis outros assuntos e abordagens.

Monstro do Pântano trazia na primeira metade da década de 1980 uma prosa muito elaborada com referências a toda uma cultura de histórias de terror (dos quadrinhos antigos aos romances de Stephen King). Além disso, aludia e comentava sociedade americana, preconceitos e tabus. As pessoas (e monstros) eram sexualmente ativos nos gibis de Alan Moore e isso já era uma diferença chocante com a média produzida na época.

O Homem-Animal do Grant Morrison abraçava todo o absurdo do super-herói. Desde coisas corriqueiras de como levar dinheiro no uniforme sem bolso até questionamentos existenciais sobre significado, propósito e entendimento da identidade e realidade. Jamie Delano usou os demônios de Constantine pra criticar as políticas de Tatcher, os yuppies, a fome, a desigualdade e exploração do trabalhador britânico. Tudo estava lá, nas metáforas nada sutis, um mago britânico vivendo as merdas de seu país.

Muito do algo mais da Vertigo vinha dessa visão dos autores, de não apenas querer “contar uma boa história”, mas falar de coisas que iam além das páginas dos super-heróis da época. Um dos pontos que sempre lembro de Sandman é o modo profundamente empático como representa uma mulher trans com a personagem Wanda no arco Um Jogo de Você.

E falamos de boas histórias, com personagens e fantasias que nos envolvem e servem pra discutir temas relevantes e disso aparecem gibis que conversam com o mundo ao redor. Histórias que fazem parte da gente, do nosso imaginário e que, no meu caso, marcam tão profundamente que ostento na minha própria pele.

Aliás, vale comentar o livro publicado em 2018 pelo pessoal do Guia dos Quadrinhos, que reunia artes e textos de diversos profissionais dos quadrinhos brasileiros celebrando os 25 anos da Vertigo. Essa publicação ilustra bem a relevância do selo para muitos de nós.

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A Vertigo surge dentro das revistas de super-heróis da DC Comics, no mercado de quadrinhos de comics. Mais mainstream impossível. É um produto da cultura e indústria de quadrinhos estadunidense dos anos 1980, que influencia muito a nossa cultura e mercado de quadrinhos tupiniquim.

Só que não é só isso: ainda estamos falando de indústria, ainda estamos falando de modelos de produção seriada. Podemos levantar aspectos interessantes das obras e considerar tudo isso uma produção cultural mais do que legítima, mas ainda estamos falando de produção industrial e esse modelo apresenta muitas tensões com o aspecto “autoral”.

Num tuíte dessa semana, Karen Berger, a editora que criou o selo e o coordenou por muitos anos, escreveu:

(Tradução meia-bomba só pra captar qualé: Pensamento de firma & ousadia criativa não se bicam. A DC parar com a Vertigo era algo que todo mundo sabia que ia rolar, mais dia menos dia. Mas, se liga: nós mudamos as regras do jogo & detonamos a porra toda. Sou muito grata por ter trabalhado com tantos autores & editores talentosos pa’porra & vlw demais a todos os leitores, que são MARA)

E essas tensões são fascinantes. Porque estamos falando de negócios, estamos falando de produtos, estamos falando de dinheiro.

Sandman foi um dos maiores sucessos comerciais da Vertigo. Ainda assim, Berger aceitou a decisão de Gaiman de encerrar o título na 75ª edição. O autor deixou muitas possibilidades para explorar comercialmente o legado de Sandman, mas foi respeitado quanto a sua autoria sobre o personagem principal. Apenas Gaiman escreve “O” Sandman, aquele Morpheus. Isso é algo que me surpreende e que, provavelmente, é sustentado por acordo legal.

O respeito pelo trabalho autoral da Vertigo, presente não só na conversa, mas também nos contratos, pode ter sido uma das razões para os “gestores” da DC terem encerrado o selo. O objetivo de uma produção industrial é explorar ao máximo, espremer todo dinheiro possível de um produto. Esse objetivo é atrapalhado por acordos que preservam os direitos do autor (funcionário).

Uma das coisas que dá pra falar do mercado estadunidense de quadrinhos são as condições de trabalho: você é autor, é autora, é uma pessoa criativa, ótimo, mas você ainda é empregado, empregada, e tudo o que você fizer é propriedade da empresa e todos os lucros em cima dessas criações que você produziu pertencem à empresa. Inclusive, as suas intenções e aspirações criativas provavelmente serão avaliadas e precisarão do endosso de algum gestor (que sempre imagino como alguém parecido com o veio da Havan).

Esse tipo de coisa não pode ser esquecida nessas discussões, não só sobre a Vertigo, mas sobre qualquer “mercado” cultural. E são discussões longas, que merecem ser feitas com bastante cuidado para entendermos nossa realidade e as possibilidades de nos mantermos fazendo coisas do tipo histórias em quadrinhos, audiovisual, literatura etc.

Acredito que a melhor coisa de toda essa trajetória da Vertigo, de suas origens e conclusão, seja justamente analisar e ponderar sobre as tensões entre os valores simbólicos das obras (seus significados sociais e pessoais para autores e leitores) e as condições materiais de produção e circulação dessas obras, muitas vezes ditadas por uma lógica de lucro e exploração.

Eu não lamento o encerramento da Vertigo. Como leitor, estou muito satisfeito com o que li e vivi desse selo, pois foi um momento muito significativo pra mim. Em um canto da minha casa, tenho esse pôster que a Devir publicou em 1994. Uma pedra que o Alan Moore já tinha cantado lá no final de Watchmen: nunca acaba. E eu acredito nisso.

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Publicado por liberpaz

Desenho, rabisco, escrevinho.

4 comentários em “[Cuba Liber] Minha vertigem

  1. Eu tava procurando sobre os meus posters e acabei achando tua publicação, tenho esse teu poster do hob e um da morte e tava doido pra enquadrar eles também, tem alguma dica de algum lugar pra comprar uma moldura com vidro?

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