[Vem comigo] Obscuro fichário dos artistas mundanos

Charge Laerte publicada na Folha no dia 03 de dezembro de 2019, título Infernópolis, traz um labirinto redondo com várias entradas. Em todas elas há policiais segurando cassetetes ou bombas de efeitos moral.Encurralados nos corredores e no centro do labirinto, muitos tentam fugir com expressão de pavor. No meio do local diversas pessoas amontoadas
Charge de Laerte publicada na Folha de São Paulo.

Estamos em tempos obtusos, tempo de colher as sementinhas do ódio remanescente da ditadura, acobertadas com panos quentes pela velha oligarquia nacional. E eis que, só em uma semana, da mesma estufa brota intimação aos artistas Claudio Mor, João Montanaro, Benett, Laerte e a um jornal (intimidados) por conta de cartuns do ano passado e uma velha conhecida do nosso breve século XX volta a assombrar um cartunista.

Pois é, até pouco ainda estávamos digerindo que representantes da polícia militar de São Paulo declararam-se ofendidos por charges publicadas. A velha polícia que, em nossa recente democracia liberal (ainda), costuma defender os direitos da velha oligarquia – uma sementinha de ódio colonialista. E o governo federal, dessa vez, declarou-se melindrado por uma charge de Renato Aroeira e invocou a Lei de Segurança Nacional (LSN), por ter supostamente infringido seu artigo 26, a saber:

Caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação.

Pena: reclusão, de 1 a 4 anos.

Parágrafo único – Na mesma pena incorre quem, conhecendo o caráter ilícito da imputação, a propala ou divulga.

Aqui entraria a charge do Aroeira, mas meus pais, que viveram a ditadura, levam essa lei muito a sério e não quero deixá-los com mais medo.

De novo, pensei? Laerte festejou seus 69 anos na última semana, benza deusa, e pensei: ela – e a gente – vai ter que passar por isso de novo? Conforme a reportagem da Folha, a Lei de Segurança Nacional vem da Ditadura. Promulgada pelo militar e presidente-general João Figueiredo, em 1983, essa sementinha brotou e continua dando desses frutos malignos. Nunca extirpamos as sementinhas de ódio: não puniram os militares que usurparam o poder do povo, não efetivamos uma democracia de fato representativa (continuamos com a mesma oligarquia de 1850), e assim chegamos a essas bizarrices que tem dedo, cheiro, DNA de censura. E, depois do desmonte da Cultura, vem de novo a censura a artistas.

Porém, a lei, que está presente em vários países, é bem mais antiga. Sua primeira versão foi promulgada pelo ditador civil Getúlio Vargas, em 1935. Vargas também incrementou a Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS), criada nos anos 1920 para prender os vadios, quer dizer, os negros libertos que estavam na rua sem trabalho (algo parecido aconteceu nos Estados Unidos, como conta o filme 13ª Emenda), bem como proibir as religiões de matriz africana. Nessa delegacia, o trabalhador poderia pegar sua declaração de bons antecedentes, o tal “atestado ideológico” de não participar de conspirações contra o governo. Até para liderar sindicato precisava do atestado. Com Vargas, a delegacia se refinou na vigilância a movimentos políticos e, durante a Ditadura Militar a partir do 1º de abril de 1964, refinaram também as práticas de tortura e desaparecimentos em seus porões.

Pois um ano antes de promulgar a LSN, Vargas fundou uma seção do DOPS em Pernambuco, e é essa a matéria do quadrinho Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos, publicado pela editora CEPE ano passado.

HQ da Cepe entre as top 10 de 2020 - Algomais

Idealizado por Clarice Hoffman, o Fichário é um projeto grandioso, que investigou os arquivos da delegacia, fazendo emergir artistas que eram sistematicamente vigiados por qualquer suspeita de conspiração. Estrangeiros, mulheres sozinhas, homens comuns. Hoffman assina, com Abel Alencar, o roteiro do quadrinho gerado por essa pesquisa, com os artistas Greg, Paulo do Amparo, Maurício Castro e Clara Moreira ilustrando quatro histórias costuradas pelos arquivos do DOPS/PE.

Trecho do quadrinho Obscuro Fichário. Consegui essa imagem desse site aqui, que fez o belíssimo e apurado trabalho de descrever algumas das páginas para cegos.

O resultado é um mosaico de histórias muito bonito e muito doído. Doído, mas necessário.

Estamos, novamente, vivendo um tempo em que as famílias estão impedidas de se despedir dos seus, dessa vez por uma doença atroz que nos afasta um dos outros e nem direito a enterrar nossos mortos temos – um tema ancestral, o direito a sepultar nossos mortos, desde, sei lá, Antígona. A ditadura também agiu assim – o que é ainda mais monstruoso, pois deliberado. Com a reabertura política, tentava-se um trabalho de luto impossibilitado pela censura. É difícil comensurar essa dor desse luto sem corpos. Com a Comissão da Verdade, iniciada nos anos 2010, tentava-se o direito, pelo menos, à Memória. E agora, de novo: impede-se o trabalho do luto, o luto é cotidianamente desdenhado. Não é por acaso que confundimos a História (o conhecimento do mundo) com os monumentos (uma cristalização do fato histórico em uma verdade de pedra, estática). Por isso, é preciso conhecer essa História, é necessário apontar a complexidade das coisas também, desconfiar dos discursos que colocam tudo no mesmo plano. A Folha, por exemplo, em uma mesma matéria que evoca a censura da LSN, comenta como a intensificação de seu uso seria um sintoma da atual “polarização” política. Não há polarização quando os supostos extremos não são equivalentes. O chargista, o jornalista, não detêm o monopólio da força, como os governos e suas polícias. E, se formos olhar rapidamente o que a própria Agência Brasil noticiou nos últimos anos sobre a LSN, só esse ano ela foi evocada pelo ex-ministro Sérgio Moro contra um youtuber e para convocar Lula à PF por chamar o presidente – que é vizinho, amigo e talvez pai de milicianos – de miliciano, e pelo presidente Jair Bolsonaro porque o seu ex-ministro Sérgio Moro divulgou conversa entre os dois.

Olhar a História às vezes até dá certa esperança. Voltando no tempo, por exemplo, na pesquisa quanto a LSN no site da Agência Brasil, a gente acha algumas notícias, no começo dos anos 2000, de pessoas sendo reparadas, anistiadas quanto a tal enquadramento durante a Ditadura. Não deixa de ser doído: porém ao voltar ao tempo pelo ofício da história, como aquela dos artistas investigados do Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos é (tentar) evitar que ela se repita.

Charge Benett publicada na Folha no dia 12 de dezembro de 2019, traz ao lado esquerdo dois policiais militar, um deles segurando uma arma e outro um cacetete sujo de sangue, ao centro uma pessoa negra caída no chão ao seu redor sangue, coberta por um jornal com manchas de sangue, uma senhora olhando para o corpo, com a sua mão esquerda próximo a boca diz: que horror essa charge.
O horror está em contar a História ou em seu Acontecimento? Charge de Benett para a Folha.

 

Publicado por mckamiquase

Maria Clara Ramos Carneiro on ResearchGate https://orcid.org/0000-0003-2332-1109

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