[Balbúrdia Café] As guerras e a ficção

Guernica, de Pablo Picasso (1937)

“… o que eu vi, o que tinha a relatar, fazia a guerra parecer muito feia. Sabem, a verdade pode ser uma coisa realmente poderosa. Não é algo que se espera.”

Kurt Vonnegut em Um homem sem pátria. Trad. de Roberto Muggiati, Record, 2006.

No último encontro do Balbúrdia com o Primeiro Café, comentamos sobre as reportagens de Joe Sacco na região da Palestina e outros autores de jornalismo em quadrinhos. No episódio do último dia 7 de março, falamos de: Matadouro 5, de Kurt Vonnegut. Trad. de Daniel Pellizzari, Intrínseca, 2019. 

Sacco tornou-se um autor importante também para discutir as consequências da Guerra. Seu livro The Great War (2013, pela W.W. Norton Company – texto da diretora de arte da New Yorker Françoise Mouly e Mina Kaneko sobre esse livro), por exemplo, retrata um episódio da primeira guerra, a Batalha em Somme, na França. Jacques Tardi, por outro lado, também retratou essa guerra em Era a guerra das trincheiras, de Jacques Tardi, trad. de Ana Ban, editora Nemo, 2011 (veja resenha de Thiago Cido sobre o livro), assim como o britânico Dave McKean, em Black dog: os sonhos de Paul Nash, trad. de Bruno Dorigatti, para a Darkside, 2018; esse período entre 1914-1918 ainda é impactante por ter aberto as portas para o impossível: um conflito de proporções inimagináveis acontecia em território dos que se ainda acham mais civilizados que os “Outros”.

Temos inúmeros retratos dessa guerra na ficção, e também na filosofia. O grande Walter Benjamin, por exemplo escreveu sobre a experiência empobrecida dos que voltavam dessa guerra, sem conseguir falar nada dela. Em outro texto, ele refletiria sobre como a história não “evolui”, não funciona em linha reta como a historiografia positivista acreditava: as catástrofes se sucedem, a história é feita de solavancos.

Além dos documentários sobre a guerra, todo setor cultural americano de ficção conseguiu se estabelecer como indústria pela venda da guerra (bem como a exportação da guerra em si, real, para outros países, em que usava a etiqueta da “democracia” em seus soldados e armas). No episódio do Primeiro Café, comentamos sobre a relação da guerra e a exportação dos modelos americanos de cultura pelo mundo, além de suas armas. E dos autores que viveram a guerra e escreveram sobre ela, como Will Eisner (comentamos Ao coração da tempestade, de Will Eisner, Quadrinhos na Cia, trad. de Augusto Pacheco Calil, 2013;), Jack Kirby (não falamos no programa, mas vale citar a biografia quadrinizada dele, por Tom Scioli, lançada pela Conrad, em 2021, trad. Érico Assis), Oliver Stone, Kurt Vonnegut. Reavivamos a memória dos esquecidos de que os Estados Unidos bombardeou países vizinhos, citando GEN – Pés descalços, de Keiji Nakazawa, trad. de Drik Sada, Conrad (2011-2016). E dos soldados americanos que retornam enlouquecidos, como em Cherry: a inocência perdida, de Nico Walker, trad. de Diego Gerlach, para a Darkside, 2021.

A gente aproveitou o espaço para falar de Kurt Vonnegut, cujo centenário se celebrará em novembro de 2022. Autor de Café da manhã dos campeões (um livro que fala de depressão, de solidão e da escravidão nos Estados Unidos, entre outras coisas), de Galápagos (um futuro muito distante em que a humanidade foi dizimada) e de Matadouro-Cinco ou a cruzada das crianças, uma dança compulsória com a morte.

Vonnegut foi prisioneiro de guerra em Dresden, na Alemanha. Enquanto ele estava escondido em um abatedouro (o matadouro 5), a cidade em volta desapareceu completamente, sob bombardeio pelos britânicos: 135 mil mortos em um único episódio, um verdadeiro massacre. O livro conta a história de Billy Pilgrim, um soldado que estava naquele abatedouro ao seu lado, mas Billy está solto no tempo: de repente estava no futuro, depois voltava para o passado, sem muito controle do tempo. Ele recebe a ajuda de um povo em uma galáxia distante, os tralfamadorianos, que o ajudam a processar o que acontece. É um livro de ficção-científica com muito humor: que denuncia muito ferozmente o horror das guerras, todas inúteis. Ele levou 20 anos para escrever esse livro: porque era difícil falar de guerras sem heroicizar, sem mitificar.

Ele comenta em outro livro (Um homem sem pátria, Record, 2006, trad. Roberto Muggiati) que a Guerra do Vietnã permitiu a ele e a outros escritores de contarem os motivos de fato sórdidos e “essencialmente estúpidos” que moveram a guerra. O livro também é conhecido por seu refrão “So it goes”, traduzido para o “c’est la vie” em francês, “coisas da vida”, nas primeiras traduções brasileiras e “é assim mesmo”, na tradução mais recente, por Daniel Pelizzari, e publicada pela Intrínseca. Uma expressão de impotência diante de tudo.

Logo havia centenas de minas de cadáveres em operação. De início não cheiravam mal, eram como museus de cera. Mas os corpos apodreceram e começaram a se liquefazer, e o fedor lembrava rosas e gás mostarda.

É assim mesmo.

Em algum momento o velho professor de ensino médio Edgar Derby, coitado, foi apanhado com um bule retirado das catacumbas. Foi preso por pilhagem. Foi julgado e fuzilado. É assim mesmo.

(Não deu tempo de falar de Ardil 22, de Joseph Heller, trad. de A.B. Pinheiro de Lemos e Mariana Menezes;, outro romance que trata a guerra pelo que ela é: estúpida. O livro conta a história de um cara que tenta fugir da guerra por atestado psiquiátrico.)

Outras guerras, sempre os mesmos retratos: pouca coisa é naïf como o pintor que perdeu a mão na Guerra do Paraguai, retratado por Maria Luque e, em A mão do pintor (Lote 42, trad. de Mariana Sanchez, 2020. As guerras são sempre feias, como Picasso pintou em Guernica. Não dá para pensar o mundo nas mesmas formas binárias que as ficções elogiosas da guerra tentaram nos ensinar: não há lado bom em uma guerra. Como resumiu o Dahmer:


Malvados, de André Dahmer

O “bônus da newsletter”, também por aqui: outros relatos de guerra e seus entornos:

·  Histoire pittoresque, dramatique et caricaturale de la Sainte Russie, de Gustave Doré: mais conhecido por suas ilustrações de livros infanto-juvenis, faz uma paródia da história da Rússia, para zombar, em 1854, da guerra da Crimeia (a de 1853-1854). As páginas estão disponíveis em site da Biblioteca Nacional Francesa.

·  Refugiados, de Kate Evans. Trad. de Letícia Ribeiro Carvalho para a Darkside, em 2018. A autora conviveu com refugiados na cidade francesa de Calais e conta essa experiência.

·  Sobre Kurt Vonnegut muitos livros dele saíram recentemente pela Intrínseca e Aleph. O documentário Unstuck in time, as adaptações para o cinema e para quadrinhos do Matadouro 5, infelizmente, não estão disponíveis em streaming ou em português br. 

·  Sobre o estabelecimento dos super-heróis, conversa com autor e pesquisador Rafa Campos Rocha no canal do Balbúrdia .


O Primeiro Café pode ser ouvido nas principais plataformas de áudio das internets. E você também pode ouvir aqui:

Publicado por mckamiquase

Maria Clara Ramos Carneiro on ResearchGate https://orcid.org/0000-0003-2332-1109

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