
Dando continuidade à série de artigos que propusemos na coluna passada, seguimos para o primeiro capítulo intitulado: DE CASE EM CASE ou DE QUADRO EM QUADRO do livro CASE, PLANCHE, RÉCIT: COMMENT LIRE UNE BANDE DESSINÉE ou QUADRO, PÁGINA, NARRATIVA: COMO LER UMA HISTÓRIA EM QUADRINHOS de Benoît Peeters.
Antes, algumas considerações: Peeters secciona os capítulos do livro em pequenos tópicos (o que facilita nossa leitura e organização). No entanto, não pretendo seguir comentando minuciosamente cada um deles, pelo contrário, a ideia aqui é de síntese dos pontos-chave dessa leitura, não de sua tradução literal.
Dito isso, os subtítulos que foram escolhidos aqui (e nas próximas colunas também) têm a função de sintetizar (quando possível) o conteúdo exposto em cada bloco de texto, não sendo necessariamente correspondentes aos subtítulos propostos por Peeters, mesmo porque muitos desses blocos aqui sintetizam dois ou mais tópicos do livro.
Por fim, a leitura proposta aqui será sempre realizada em articulação com outros autores, de preferência (sempre que possível) já publicados no Brasil, reafirmando o compromisso de uma leitura coletiva e partilhada com o objetivo de ampliar o repertório do leitor.
Allons-y!
Desequilíbrio entre o linear e o tabular
Peeters começa sua reflexão a partir do texto de abertura da publicação Les Cahiers de la bande Dessinée*de fevereiro de 1984 intitulado “Quadros Memoráveis” de Pierre Sterckx, que faz uma espécie de elogio ao quadro (único), sobrevalorizando-o em detrimentos dos demais componentes que compõem um quadrinho.
*Les Cahiers de la Bande Dessinée é uma revista de crítica dedicada aos quadrinhos publicados sob vários nomes e formatos de 1969 a 1990 e de 2004 a 2005 por Jacques Glénat (sim, o fundador da editora Glénat) feita aos moldes de outra revista, esta, mundialmente famosa, a Cahiers du Cinéma criada em março de 1951 por Jacques Doniol-Valcroze, André Bazin e Lo Duca. LCBD se destaca por sua abordagem monográfica e, é claro, pelos seus influentes colaboradores, como o já conhecido por aqui, Thierry Groensteen, o próprio Benoît Peeters, assim como outros grandes nomes da crítica franco-belga, como Pierre Fresnault-Deruelle, e Thierry Smolderen, só para citar os mais influentes.
Para Sterckx esses “quadros memoráveis” constituem-se de “imagens de tal valor que dispensariam resolutamente qualquer contexto, tornando-se obras próprias”. Cabe aqui um complemento: Esses “quadros memoráveis” são assim nomeados por Sterckx pela sua capacidade de continuarem voltando à memória do leitor, como uma espécie de sobrevivência mnemônica. A proposição de Sterckx é a de que esses quadros têm uma força em si e são capazes de resumir, ou sintetizar os elementos dos vários outros quadros que compõe uma história em quadrinhos. Para Peeters, o problema desse “elogio ao quadro” de Sterckx é que parece significar que a dimensão pictórica dominaria a função narrativa a ponto de suplantá-la.
A discussão que se desenha aqui é mais complexa do que aparenta: a relação entre quadros únicos e a narrativa, articulados em torno de uma tensão conceitual entre dois protocolos de leitura que constituem intrinsecamente os quadrinhos: o linear (sequencialidade) e o tabular (simultaneidade), se encontra ainda no cerne de muitas das discussão a respeito da natureza (ou do sistema, como propõe Groensteen) dos quadrinhos. Daí o problema que surge das tentativas de definição dos quadrinhos engendrada, por exemplo, por Will Eisner e Scott McCloud, o de que os quadrinhos são uma “arte sequencial” esquecendo-se completamente de seu caráter simultâneo.

Para ficarmos com um exemplo, Pierre Fresnault-Deruelle em um artigo intitulado Du linéaire au tabulaire (Do linear ao tabular) já investigava, em 1976, a complexificação do espaço nos quadrinhos na transição da vinheta das tiras de jornais (de protocolo linear) para a página de quadrinhos (de protocolo linear e tabular, simultaneamente). Para Fresnault-Derruelle, os quadros são imagens em “desequilíbrio” oscilando entre o récit e o tableau ou entre o narrativo e o pictórico, enfatizando essa tensão fundamental como complementares e conflitantes, pertencentes a uma dialética de continuidade versus descontinuidade, observando a “hesitação” sempre possível entre esses dois protocolos de leitura, em contraponto a Sterckx, que enfatiza apenas o aspecto pictórico do quadro sobre a narrativa.

O que já torna a definição de Eisner/McCloud um problema por si – pois na década de 1970 já havia pesquisas que apontavam para essa especificidade dos quadrinhos (inclusive no Brasil com Moacy Cirne!) – para nós brasileiros, se torna um problema ainda maior: Com a falta de publicações de referência no país e com o esquecimento das contribuições de Moacy Cirne para o campo, a visão limitada de Eisner e McCloud (por puro vício acadêmico), se torna regra.
Repetido como um mantra ad aeternum, hoje a terminologia “arte sequencial”, é difundida por blogs, sites e canais do youtube (especializados ou não), tornando-se, equivocadamente, sinônimo de quadrinhos, como se apenas a sequencialidade por si fosse mais do que suficiente para se compreender a linguagem dos quadrinhos.
É preciso urgentemente ampliar essas discussões.
O pericampo e a natureza do quadro
Peeters problematiza aqui outro dos pressupostos largamente explorados pela crítica de quadrinhos (especializada ou não), que é a comparação dos quadrinhos com o cinema. O foco aqui, no entanto, recai especificamente na técnica de corte.
No cinema o quadro é uma redundância obrigatória e imposta pelo plano da projeção, resolutamente fixado. Por outro lado, nos quadrinhos, o quadro é um elemento fundamentalmente variável e flexível. Para além do formato geral da página (fixada pelas convenções de produção), as possibilidades de intervenção nos tamanhos e formatos dos quadros são quase infinitas.
O estatuto do quadro nos quadrinhos se aproxima, em certa medida, da linguagem pictórica. Na pintura, a ideia de moldura equivale ao requadro nos quadrinhos, partilhando também da mesma função, que é o desejo de fechamento, de isolar um fragmento do tempo e do espaço.
Peeters traz uma citação em que André Bazin propõe uma diferença fundamental entre o quadro pictórico e o quadro da projeção cinematográfica, o que nos dá uma luz de como encarar o quadro nos quadrinhos:
Os limites da tela de cinema não são, como o vocabulário técnico daria por vezes a entender, a moldura da imagem, mas a máscara que só pode desmascarar uma parte da realidade. A moldura polariza o espaço para dentro, tudo o que a tela de cinema nos mostra, ao contrário, supostamente se prolonga indefinidamente no universo. A moldura é centrípeta, a tela de cinema centrifuga.
(O que é Cinema?, Ubu, 2018, tradução de Eloisa Araújo Ribeiro).
Segundo Peeters, o quadro nas HQs não se enquadra em nenhuma dessas duas categorias. Para entender esse espaço de “fora do quadro”, Peeters elabora a ideia de pericampo.
O pericampo (péri-champ) seria esse espaço constituído pelos demais quadros da página, e que se prolonga para outras páginas, incluindo também as páginas duplas. Um espaço ao mesmo tempo outro e vizinho que, inevitavelmente, influencia na percepção do quadro no qual os olhos estão fixados. Segundo essa ideia, nenhum olhar pode apreender um quadro como uma imagem solitária.
O bom quadrinista é aquele que organiza o layout de suas páginas levando em consideração também o pericampo e sua leitura global/tabular, não somente a sequencialidade das tiras, em uma leitura linear. Essa preocupação topológica é parte fundamental da linguagem dos quadrinhos, lembrando que o leitor de quadrinhos é, antes de tudo, um espectador.
Peeters finaliza esse capítulo propondo uma ideia ampla da natureza do quadro nos quadrinhos. Para ele, o quadro constitui-se de uma variável em um conjunto, um instante em uma continuidade, um jogo de contrastes e complementaridades que lhe confere a sua força e o seu valor. A fragmentação é sua maior característica.
Mesmo quando um quadro assume aspectos mais espetaculares, como página dupla, por exemplo, os elementos como balões de fala, onomatopeias e outros signos indiciais, como as linhas sinéticas, passam a insistir em seu caráter fragmentário. Nesse sentido, cada quadro acaba por conter um lembrete do quadro anterior tanto quanto uma chamada para o próximo quadro. Para Peeters, a verdadeira magia dos quadrinhos está entre as imagens que ele opera, na tensão que conecta os quadros.
Peeters conclui chamando a atenção para alguns aspectos da sarjeta, ou dos “brancos”, como ele se refere a esse espaço (e que Groensteen viria a chamar de branco intericônico) que caracteriza-se por esse intervalo entre dois quadros, e que surge como uma espécie de “quadro-fantasma”, uma miniatura virtual inteiramente construída pelo leitor (que Groensteen propõe como lugar de articulação ideal, recusando a ideia de imagem virtual) responsável por dar sentido, simultaneamente ao quadro que o precede e o que o sucede, podendo assumir o caráter de elipses, de conexão, de movimento ou expansão/contração repentina no tempo.

Encerrando por aqui as considerações de Peeters sobre o quadro, anuncio que em nossa próxima coluna nos aventuraremos no seara da página de quadrinhos.
A bientôt!
2 comentários em “[Vá com o Carmo] Especial: Como ler Benoît Peeters – De quadro em quadro (Capítulo 1)”