[Vá com o Carmo] Especial: Como ler Benoît Peeters – O quadro, a página e a narrativa (introdução)

Prólogo

Esse artigo dá início a uma série especial dentro da minha coluna “Vá com o Carmo”. Proponho uma breve pausa nas resenhas/ensaios e, em contra partida, te convido a um mergulho. Explico.

É de amplo conhecimento da nossa cena (sobretudos para os leitores-pesquisadores) a falta de publicações de referência no campo da pesquisa em história em quadrinhos no Brasil. Não tem jeito. Todos aqueles que querem pesquisar quadrinhos no Brasil, cedo ou tarde, vão se deparar com essa ausência. Ausência de diversidade, de atualidade, de traduções e até de catálogo de obras já traduzidas, ou mesmo obras de referência inconteste de pesquisadores nacionais. Para ficar em um só exemplo: boa parte da bibliografia do nosso maior pesquisador e pioneiro, Moacy Cirne, não está disponível hoje, o que é um pecado.

O mergulho que proponho, no entanto, não é na obra de Cirne (para este, há um projeto lindo em curso, aguardem!) mas na obra de Benoît Peeters, especificamente, em seu livro: CASE, PLANCHE, RÉCIT: COMMENT LIRE UNE BANDE DESSINÉE, Que podemos traduzir como QUADRO, PÁGINA, NARRATIVA: COMO LER UMA HISTÓRIA EM QUADRINHOS, publicado originalmente em 1991 pela editora francesa Casterman, com uma segunda edição revisada em 1998 e uma republicação em 2003.

Capa da 1ª edição francesa

Infelizmente, a edição que eu tenho disponível é a primeira, sem a revisão. Mas como me parece que nenhuma editora vá se interessar em publicá-lo, será como diz o velho ditado: “Faute de boeuf on fait labourer par son âne” (Na falta do boi, se faz arado com o burro), equivalente ao nosso: “quem não tem cão caça com gato”.

A ideia desta série especial é ir descobrindo com você o livro do Peeters, em uma leitura lida e comentada simultaneamente, uma forma de partilhar e aprender juntos. O esforço será o de tentar condensar cada capítulo em um artigo na coluna ao longo das próximas (não sei quantas) semanas, começando aqui com a introdução.

Aos interessados, o chat é serventia da casa, ótima pedida para o prolongamento dessa discussão. Então? bora lá?

Introdução

Em seu texto de abertura, Benoît Peeters parece propor um olhar mais amplo para o cabedal de ferramentas disponíveis para se “ler” um quadrinho sem que nenhuma, a priori, seja proibida e/ou definitiva. Peeters defende que a potência dos quadrinhos se encontra, justamente, na variedade de visões que se pode ter sobre eles, seja ela (a leitura) ingênua ou erudita, política ou sociológica, filosófica ou psicanalítica.

O que lhe interessa é uma abordagem mais analítica dos componentes da linguagem dos quadrinhos, mais centrada no seu funcionamento do que na sua geração.

Um outro ponto importante ressaltado por ele é o de que esse livro procura tomar certa distância da abordagem semiológica, tão presente no campo acadêmico francês. Por mais que possa sugerir o contrário num primeiro momento, Peeters busca escapar aos formalismos de uma “gramática pura” dos quadrinhos.

No entanto, além dessa visão aparentemente holística, o que mais me interessou nessa obra é a atenção que Peeters parece dedicar às imagens, tanto no que diz respeito a sua criação e construção, quanto suas implicações formais nos componentes de uma página (quadros, requadros, tiras), mas também entre o texto, o desenho e a mise en image*.

*O professor e pesquisador de quadrinhos da Universidade de  Sorbonne, Jacques Dürrenmatt, empresta do cinema o termo mise en scène para falar de mostração nos quadrinhos (Ponto de vista, enquadramento, focalização [narrador] ocularização [leitor] e montagem) e desenvolve o termo mise en page para falar de artrologia (decupagem, seleção, distribuição, entrelaçamento, layout).

Dito isso e, partindo do pressuposto de que no segundo capítulo do livro O Sistema dos Quadrinhos (Marsupial, 2015, tradução de Érico Assis), Thierry Groensteen admite que sua formulação sobre a artrologia é análoga ao que propõe Peeters em Case, Planche, recit, podemos com isso (pelo menos a princípio) entender a mise en image aqui, de forma parecida de como entendemos a artrologia em Groensteen: que é, grosso modo, “por em relação uma pluralidade de imagens solidárias”. Toquemos o barco.

Tais conclusões foram formuladas a partir da leitura da tese de Maria Clara Carneiro intitulada: “A Metalinguagem em quadrinhos: Estudo de Cotre la bande dessinée de Jochen Gerner“.

Esse livro, por fim, parece propor uma ponte (que muito me interessa!) entre dois campos demasiadamente separados e pouco articulados, sobretudo, na cena da pesquisa sobre quadrinhos no Brasil: o do pensar (no sentido acadêmico) e o do fazer quadrinístico (no sentido poético) que, para Peeters, longe de se oporem, podem revitalizar-se mutuamente para uma melhor compreensão dos quadrinhos, abrindo assim outras possibilidades criativas.

*Agradecimentos especiais à Maria Clara Carneiro que auxiliou (e auxiliará) essa empreitada tanto com o francês, quanto com a terminologia específica que ela conhece muito bem.

Quem é Benoît Peeters?

Nasceu em Paris,  mas passou a infância em Bruxelas. De volta a França, pulveriza sua carreira em atividades diversas, como as de: romancista, biógrafo, roteirista, crítico e teórico de quadrinhos, roteirista e realizador de cinema,  editor e curador. Também é conhecido como um dos grandes especialistas na obra de Hergé. Esse ano foi um dos curadores da exposição Building Chris Ware inaugurada durante o 49º Festival Internacional de quadrinhos de Angoulême.

Como autor e roteirista de quadrinhos, seu trabalho é conhecido pelo rompimento com as convenções formais e pela experimentação. A título de exemplo, sua série mais famosa, Les Cités Obscures, criada em 1982 em parceria com o artista belga François Schuiten, não obedece a nenhuma das regras clássicas de continuidade de uma série: os protagonistas não são necessariamente os mesmos de uma história para outra; cada álbum se passa em uma cidade diferente, em um momento diferente. As histórias são ambientadas em um continente imaginário localizado em um mundo paralelo, onde pululam múltiplas referências filosóficas, artísticas e literárias que vão do surrealismo metafísico aos labirintos borgianos, passando pela sanha discricionária em que nada deve a um Italo Calvino ou à verve expedicionária dos livros de Júlio Verne.

Capas de todas as edições da série “Les Cités Obscures

As escolhas estéticas da arte também variam bastante de álbum para álbum, no entanto, um dos grandes destaques da série são os detalhados projetos arquitetônicos elaborados por Schuiten, para as diferentes “cidades obscuras”, que por sua vez são, em alguns casos, versões sombrias de cidades conhecidas como Bruxelas ou Paris.

Além dos quadrinhos, o universo das Cités Obscures faz parte do que poderíamos chamar de um universo expandido crossmedia que abarcam outros suportes, como a música e o livro ilustrado infantil. Podemos incluir nesse desdobramento uma espécie de guia turístico inventando, Le Guide des Cités, que mapeia todo esse universo em uma minúcia que incluem além de mapas e plantas, detalhes sobre fauna e flora, artes plásticas, ciência e tecnologia, com destaques insólitos como informações práticas sobre alojamento, meios de transporte, gastronomia e vinhos(!!).

A série principal das Cités Obscures conta com 12 álbuns publicados entre 1983 e 2009 pela Casterman, na França, e também existem edições em português, publicadas pelas editoras Meribérica e Edições 70. Infelizmente, a série nunca foi publicada por aqui.

Como pesquisador, Peeters publicou diversos livros sobre quadrinhos e ensaios monográficos sobre quadrinistas da envergadura de Hergé, Chris Ware e Jiro Taniguchi.

Com exceção da biografia de Jacques Derrida (Civilização Brasileira, 2015, tradução de André Telles) e do conto ilustrado O Signo de Lúcifer, com desenhos de Alain Goffin (Editora Scipione, 1992, tradução de Luis Rivera) toda a sua produção, tanto acadêmica quanto de quadrinhos, continua inédita no Brasil.

Publicado por Valter do Carmo Moreira

Professor, pesquisador, autor de histórias em quadrinhos e artista plástico. www.valtermoreira.com.br

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