
Após um pequeno hiato, retornamos com mais um artigo da série que contempla a leitura do livro CASE, PLANCHE, RÉCIT: COMMENT LIRE UNE BANDE DESSINÉE ou QUADRO, PÁGINA, NARRATIVA: COMO LER UMA HISTÓRIA EM QUADRINHOS, de Benoît Peeters.
Na última coluna, acompanhamos Peeters formular um interessante raciocínio sobre a decupagem e o layout específicos dos quadrinhos, que é capaz de propor a montagem de uma narração por meio de imagens fixas e da segmentação da página, tensionando as duas dimensões que fundamentam a linguagem dos quadrinhos: o tempo (narrativo) e o espaço (pictórico). Essas dimensões são basilares para a sua concepção de uso da página, dividida em quatro princípios que norteiam a disposição da grade de quadros na página de quadrinhos: convencional, retórica, decorativa e produtiva.
Feita essa pequena rememoração, retomemos a leitura.
Via de Mão Única
Peeters abre o capítulo com um elogio à grande presciência e sagacidade do genebrino pioneiros dos quadrinhos, Rodolphe Töpffer (1799 – 1846), que, muito cedo, percebeu que o estilo desenvolvido em suas Histórias em Estampas, exercido com extrema liberdade e de fluidez quase caligráfica, estava intimamente ligado ao processo técnico empregado na sua reprodução: a autografia*.
*Processo de reprodução litográfica inventada pelo ator e dramaturgo austro-alemão, Alois Senefelder, em 1796. A técnica consiste em uma “impressão química”, baseada na repulsão da água com a gordura. O artista traça letras ou desenhos sobre um papel especial para, em seguida, decalcá-los sobre a matriz, uma pedra calcária, utilizando-se tinta ou giz oleoso que, no momento da impressão, é levemente umedecido. A água das áreas não marcadas, repelem a tinta e somente o que foi gravado é impresso diretamente no papel.
Ao longo da história dos quadrinhos é notório que serão esses processos chamados de “processos diretos” (como a autografia, utilizados por artistas como Töpffer) que contribuíram para o avanço das tecnologias de reprodução e, consequentemente, para a sofisticação das páginas de quadrinhos, até chegarmos no século XX com a impressão offset.
No entanto, parece que na época de Töpffer, essa técnica só permitia a impressão de uma tiragem muito pequena (em torno de 500 exemplares), consequentemente, limitando a circulação e favorecendo a falsificação.
Já em 1845, o último trabalho que Töpffer publicou em vida, Histoire de Monsieur Cryptogame, que saiu no Brasil com o título de História de Monsieur Cryptogame (SESI-SP, 2018, organizado por André Caramuru Aubert e tradução de Heloisa Jahn) sofreu uma verdadeira adaptação pelo desenhista Cham, responsável pela preparação das matrizes originais para gravura*.
*Gravura é um termo “guarda-chuva” utilizado para nomear um conjunto de técnicas de impressão usadas para reproduzir imagens a partir de suportes (matrizes) duros, como a madeira (xilogravura) e o metal (calcografia), – com base em talhos, incisões, sulcos e corrosões, realizados com formões, goivas, buris e pontas secas. Nas técnicas de gravura, a impressão é direta, ou seja, a matriz mantém contato direto com o substrato (papel), o que consequentemente exige que a imagem seja gravada na matriz de modo invertido.

Talvez por desconhecimento da técnica de gravura por parte de Töpffer e a imperícia de Cham, ambos não se atentaram para a inevitável inversão que as imagens sofrem no processo de impressão da gravura.
Foi assim que Cham arruinou, sem nem perceber, a sequência de perseguição no convés do barco.
Na versão de Töpffer, as três personagens casam perfeitamente com o movimento da leitura ocidental (da esquerda para a direita), com um belo efeito geral que lhes permite, de certa forma, ultrapassar as fronteiras entre os quadros.
Na versão de Cham, a dinâmica de cada uma das personagens é, em sua adaptação, perturbada e contrariada pela trajetória do olhar. Os perseguidores tornaram-se perseguidos, e devemos, em cada quadro, refazer nossos passos.

Ao levantar esses dados curiosos do processo de (re)produção de Histoire de monsieur Cryptogame, Peeters concluí que ao trabalhar com uma tira, Töpffer entendeu imediatamente que uma página de quadrinhos é, em particular, uma máquina de converter um espaço em sucessão: por causa do sentido de leitura no Ocidente, considera-se que o quadro da direita vem, impreterivelmente, depois do quadro da esquerda.
“Ler uma história em quadrinhos é um legado direto do modelo literário da linha.”
Dando um salto no tempo, podemos perceber que os problemas que os quadrinistas sucessores de Töpffer enfrentaram (e enfrentam), à medida que a página se torna mais complexa, será (e ainda é), em teoria, o mesmo que Töppffer enfrentava em seu tempo: o de dominar a sequência e conduzir o olhar do leitor pelos quadros. Com a diferença que a complexidade e o nível de sofisticação dos layouts das páginas evoluíram tanto quando os sistemas de impressão. Já no começo do século XX, grandes mestres como Winsor McCay e Frank King vão não só superar esses problema, como também jogar com ele, ao elaborarem páginas com ordens de leitura tão complexas quanto inventivas.

Assim como aconteceu com muitos outros artistas pioneiros da linguagens dos quadrinhos, as regras descobertas por Töpffer logo caíram em esquecimento, para serem gradativamente reinventadas por seus sucessores.
Em uma das raras entrevistas do autor de As Aventuras de Tintim concedida à Numa Sadoul, Hergé formulou, de forma muito clara, os princípios que lhe parecem fundamentais para os quadrinhos:
“A grande dificuldade, ao que parece, nos quadrinhos, é mostrar exclusivamente o que é necessário e suficiente para a compreensão da história, nada mais, nada menos. O leitor deve ser capaz de acompanhar facilmente a narração. Existe, em particular, uma regra absoluta: em nossos países, lemos da esquerda para a direita. Bem, mesmo com alguns autores experientes você ainda encontra muitas vezes imagens onde você leu pela primeira vez: “Nada mal e você?”, e só depois: “Como você está?”, porque esses autores esqueceram a direção de leitura da regra. Quando mostro um personagem correndo, ele geralmente vai da esquerda para a direita, em virtude desta simples regra: que então corresponde a um hábito do olho, que acompanha o movimento e o acentua: da esquerda para a direita, a velocidade parece maior do que da direita para a esquerda.”
Trecho da entrevista de Hergé a Numa Sadol
Peeters deixa evidente que a grande preocupação de Töpffer e Hergé é, afinal, o domínio retórico dos sentidos de leitura. Mas como o próprio Peeters deixou claro (como vimos na coluna anterior) ao discorrer sobre o uso produtivo da página, é possível jogar com esses problemas retóricos em vez de simplesmente tentar dominá-lo.
Em todas as direções
Frédéric Othon Théodore Aristidès, mais conhecido por seu pseudônimo Fred (1931-2013), Foi um quadrinista francês que ficou famoso por sua série Philémon, que explora como ninguém a subversão retórica da linguagem dos quadrinhos.
Já na página seis do sétimo tomo de Philémon: L’ille des Brigadiers, Félicien oferece ao velho Barthélemy uma nova maneira de entrar no mundo das letras. “Desta vez, tudo vai ficar bem. Você vai passar pela corda”, ele anuncia misteriosamente, antes de entrar em um alçapão. Mas o quadro seguinte é o cenário de um dispositivo singular, que levará a um novo fracasso dos personagens.

Fred explicitamente encena a trajetória do olhar. Seguindo o hábito de leitura ocidental, o leitor primeiro deixa os olhos percorrerem a página para a direita, até o que imagina ser o segundo quadro. Mas imediatamente, o leitor é resolutamente colocado em seu lugar por Félicien:
“Não, assim não!… Caramba!… O leitor estragou tudo. Esta página deve ser lida de cima para baixo, depois de baixo para cima!… Ah, aí, aí… Você tem que começar tudo de novo!”
Agora seguindo o curso dos personagens, o leitor então inicia um novo périplo, de acordo com as instruções que lhe são dadas. Mas é para chegar a um novo impasse, pois ele se encontra no segundo quadro, retornando à cena de seu erro inicial.
“Escavada” em seu centro, esta página memorável descreve um movimento circular, um nó na leitura do qual parece muito difícil desatar.
Nesse terceiro capítulo, ainda pululam outros bons exemplos de subversão trazidos por Peeters, mas para nossa leitura não exaustiva desse livro, essa amostragem me parece eficaz para exemplificar tanto a norma quando a subversão do processo de leitura de uma página de quadrinhos.
Peeters conclui constatando que essa desconstrução do sentido da leitura (que se soma a uma desnudação do código) confirma que o jogo com as regras tácitas do meio é multiplicado pelo conhecimento técnico que se tem dele; só a maestria e o domínio de seus códigos são capazes de dar ao autor essa liberdade, enquanto a estranheza só pode considerar a norma como um horizonte tanto mais desejável quanto inacessível.
Encerramos por aqui esse périplo tanto pela norma quanto pela subversão do processo de leitura de uma página de quadrinhos. Ainda restam mais dois capítulos antes do fim de nossa jornada. Para quem acompanhou até aqui e curtiu, você mal poderá esperar pelo que ainda temos pela frente. À bientot!
2 comentários em “[Vá com o Carmo] Especial: Como ler Benoît Peeters – Entrada proibida (Capítulo 3)”