[Bartheman] Minhas orelhas – Vitralizado: HQs e o mundo, de Ramon Vitral

Acho que termino a série por aqui. Tenho uma orelha no Encruzilhada da Veneta, que saiu desse artigo aqui. Tem aspas em livro do Érico também (também fiz com o Assis o posfácio de Goela negra, de que me orgulho bastante). Coisa pouca, mas que me enche de orgulho. E aí concluo com esse posfácio que saiu no livro do Ramon Vitral, onde ele reúne seus textos para o blog Vitralizado. Ramon me permitiu uma reflexão sobre esses últimos dez anos de site, em que ele descortinou a cena de uma forma genuína e apaixonada. O posfácio e o seu texto, falam muito sobre os princípios desse blog aqui, que também sonha alcançar 10 anos, deixando um registro dessa cena que a gente tanto ama.

Vitralizado – HQs e o Mundo, de Ramon Vitral – MMarte, 2023

Estava tamborilando no teclado, à procura de palavras para comentar esse Almanaque Vitralizado, quando o correio eletrônico apitou: e-mail avisava sobre novo texto publicado no site Vitralizado, dessa vez o aviso de uma matéria do Ramon sobre Galvão Bertazzi, para a Folha. (Ramon diz que eu devo ser a única inscrita na lista do site; aposto que, se você ainda não é, vai se inscrever assim que pousar esse livro aí). Bate aquele conforto de mais uma coluna ou entrevista que recorta nosso momento sendo elaborada, compartilhada e lida por tantos leitores. 

Volto à página – não está em branco, mas pontilhada de letrinhas recortadas dos textos de Ramon. Uma responsabilidade imensa vir “fechar” esse livrinho; releio seus textos, penso. Para escrever sobre o Almanaque Vitralizado, desligo o correio eletrônico, fecho várias janelas do navegador, deixo celular no silencioso. Escrever – e ler – pede concentração, sobretudo para textos tão cuidados que Ramon nos entrega. Algo difícil para nosso cotidiano atravessado por tantos mensageiros automáticos e urgência de socialização virtual. Nesses dez anos de blog que lemos aqui, pelo contrário, encontramos um oásis no mundo de avidez por respostas, certezas: os textos de Ramon são feitos com a calma e a ponderação com quem se preocupa em registrar o momento – não com uma selfie instantaneamente compartilhada,1 mas como alguém que pinta o quadro, com seus detalhes, suas nuances, e ainda desaparece diante de quem o vê. 

Mesmo se escreve em primeira pessoa, sobretudo em seus ensaios para a “Sarjeta” (muitos dos textos em fragmentos que compõe esse livro), há sempre esse desejo de jornalismo e de argumentar a partir de elementos que ele nos traz em seus textos. Sua grande ars poetica está no capítulo “Por que faço jornalismo em quadrinhos”: ele procura escrever sobre quadrinhos para dialogar com eles, com os objetos e as pessoas que os produzem. Mas, se partiu da admiração pelos autores e suas obras, ele passou a entender seu ofício como uma prestação de serviços para a “comunidade leitora”. Além de pintar o momento, é a esses leitores, bombardeados por press releases ou opiniões impressionistas, que Ramon se dirige. E ele vai tentar explicar a construção de determinada obra, como “dialoga com o mundo”. 2Mais importante, Ramon faz a defesa do jornalismo, e sublinho esse trecho, que já repliquei lá no Balbúrdia  

Jornalismo não permite inclusão de links para compra de uma obra em matérias ou críticas focadas nesse mesmo título. O nome disso é publicidade. Jornalismo também não dá brecha para reproduções imponderadas de discursos oficiais. E divulgação é consequência, fruto de bom jornalismo, jamais o objetivo maior.

Nessa pintura do momento que Ramon nos apresenta (não digo fotografia, porque ele traz sua mão, seu estilo, suas cores – a tal ponderação que mencionei antes), há literalmente inúmeros diálogos. Entrevistas com artistas bem diferentes, 

Helô d’Angelo, Chris Ware, Emil Ferris, Carlos Panhoca, Lobo Ramirez, Joe Sacco, Julio Shimamoto, Nina Bunjevac, Rutu Modan, Marcelo D’Salete, Juscelino Neco, Jason Lutes, Nick Sousanis, Tom Scioli, Adrian Tomine, Simon Hanselmann, Rafa Coutinho, Richard McGuire, Cecil (Cecília) Silveira, Débora Santos, Batista, Rogi Silva, Dandara Palankof, Grazi Fonseca, Cecilia Marins, Amanda Treze, Gabriel Dantas, Aline Lemos, Verônica Berta, Pedro PJ Brandão, Gabriela Borges, Cinthia Saty Fujii, Helena Cunha, Jéssica Groke, Paulo Floro, Manda Conti, Gustavo Nascimento…

Almanaque Vitralizado documenta esses livros, tiras, revistas, artistas, pelo diálogo com os sujeitos que os produzem. E esse diálogo, conduzido por um leitor profissional, ajuda autores a produzir, também, reflexões sobre o que fazem. Como quando ele permite a Sacco nos falar dessa diferença sutil entre jornalismo e o ensaio, quando o entrevista sobre Palestina:

…estou me movendo em um espaço que não vou chamar de ficção, mas um espaço de uma espécie de ensaio onde estou pensando mais sobre a psicologia humana, por que as coisas são como são.

Ou quando possibilita a Helô elaborar essa reflexão sobre a relação entre a produção de ficção e o jornalismo informal: a fofoca como inspiração

Eu sempre digo que, para ser um bom quadrinista, a pessoa precisa ter apenas uma característica: ser uma boa fofoqueira. Porque as fofocas que ouvimos por aí são inspiradoras e material para criarmos histórias mais verossímeis. E eu sempre tive ouvidos atentos: gosto muito de ouvir os bafafás na rua, no ônibus, e especialmente de vizinhos. Fico imaginando o que aconteceu ali e frustrada por saber que nunca vou descobrir de fato.

Não encontramos, aqui, a simples reprodução desses diálogos. Há reflexão de Ramon, como bom jornalista, ao nos introduzir cada entrevista; há elucubrações de Ramon acerca do que lê, em ensaios sobre um quadrinho, um tema. Gosto, sobretudo, do que ele nos traz sobre adaptação; sobre a cena editorial brasileira e profissionalização. 

Uma boa adaptação tem como característica básica a autonomia de existência em relação à obra que a inspirou. Seja a adaptação de um livro para um filme, de um conto para uma peça, de uma música para uma HQ ou o que for. Ela pode seguir à risca o enredo da obra original e reproduzir elementos presentes nesse trabalho prévio, mas isso não é essencial. Eu pelo menos não me importo com fidelidade. 

O mercado brasileiro de histórias em quadrinhos jamais será profissionalizado enquanto profissionais contratados para a mediação de mesas, bate-papos e painéis não forem devidamente remunerados. Por mais óbvio e lógico que seja esse raciocínio, são cada vez mais comuns os convites que recebo para trabalhar de graça em eventos públicos ou privados, com patrocinadores e, ocasionalmente, com cobrança de ingressos caros e fins lucrativos.

Agora, o site Vitralizado está guardado em nossa estante. Longe dos comunicadores automáticos, a gente pode folhear seus textos com a mesma calma que ele nos escreve. Fechar e reabrir o livro, para voltar e entender esses últimos dez anos da cena editorial de quadrinhos no Brasil: os autores brasileiros, os traduzidos, seus editores, as estéticas bem diferentes, da “HQ de maloqueiro” a graphic novels.3 

Ler esse livro também responde à pergunta que sempre nos fazemos, Ramon, nós balbúrderes, de por que continuamos com os blogs: pensar textos que retratem o momento, mas que possam ser lidos para além do agora. Não se preocupar com a urgência de dar pitacos, mas pensar os leitores de hoje e de depois. É muito bonito como esse livro toma toda essa forma confirmando nossa perspectiva. E pensar que ele possa circular em um espaço para além dos algoritmos e protocolos virtuais, ser encontrado por acaso em estantes de livrarias, de feiras, de bibliotecas, de casas de amigos. 

  1.  …e tão imprecisa sobre o momento; a focalização das câmeras subjetivas só nos trazem um fragmento do sujeito – as milhões de resenhas no YouTube repetem em sua grandessíssima maioria o modelo sélfico para falar de uma obra, no sentido do modelo visual mesmo: é o sujeito que está focalizado, é sua opinião que vai enaltecer o título, pois angariou seguidores que compartilham de valores similares. ↩︎
  2.  Nos últimos anos, também faço essa base para pensar a resenha crítica, tentar fugir a uma simples opinião pessoal, mas tentar entender os efeitos estéticos e éticos de determinada obra. Comungo com Ramon nessa ideia da crítica como uma prestação de serviço ao leitor, e pensar cada obra como algo em seu contexto singular, produzidas por sujeitos singulares, mas em constante conversa com outras obras e o mundo. ↩︎
  3.  Ramon é comedido com o termo! Graphic novel aparece em descrição de livros em textos produzidos para grandes jornais ou ligado a títulos de projetos ou prêmios. Livro, álbum, HQ e gibi aparecem em muito mais ocorrências que o termo em inglês, nessa ordem.    ↩︎

Publicado por mckamiquase

Maria Clara Ramos Carneiro on ResearchGate https://orcid.org/0000-0003-2332-1109

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