Quando eu soube que o Neil Gaiman ia escrever um prequel de Sandman, a única coisa que passou pela minha cabeça foi “Deus, por favor, que não seja só um caça-níqueis”. Tudo bem, era o bom e velho Neil Gaiman acompanhado do J.H. Williams III, um artista de primeira. Ainda assim, eu tinha um receio, sabe.
Sandman apareceu no mercado de quadrinhos no final da década de 1980. Em janeiro de 1989 nos EUA e em novembro de 1989 no Brasil. Era pra ser só mais uma série mensal, ninguém botava muita fé, achavam que ela seria cancelada antes da edição número 12. Só que a HQ surpreendeu, tornou-se muito popular e foi uma das bases pra criação do selo Vertigo. Sandman era uma história de magia e fantasia que se passava nos bastidores do universo de super-heróis da DC Comics, mas ia muito além disso. Neil Gaiman ia surpreendendo, quebrando expectativas, inserindo temas incomuns pra um gibi mainstream norte-americano.
Nas páginas de Sandman qualquer coisa podia acontecer. Os personagens podiam ser fadas, anjos, demônios, super-heróis, personagens históricos. Mas o gibi não se segurava somente nas tramas fantásticas. Havia uma intertextualidade hipnotizante, referências a obras literárias, metalinguagem, autorreferências. O que eu mais admiro é o modo como Gaiman constrói uma representação de cotidiano extremamente atraente, através de diálogos e personagens muito bem trabalhados. Morte, Rose Walker, Barbie, Ishtar, Urânia Blackwell (a Garota-Elemental, veja só) e Thessaly são exemplos de ótimas personagens femininas da série. Gosto muito do modo como Gaiman representou gays e trans em Sandman. A personagem Wanda, de Um jogo de você, é, pra mim, uma das mais marcantes.
A última edição de Sandman foi a de número 75, publicada em março de 1996 nos EUA. No Brasil, enfrentando uma série de adversidades, Leandro Luigi Del Manto capitaneou pela editora Globo toda a primeira trajetória de Sandman, publicando a derradeira edição 75 em outubro de 1998.
A primeira das seis edições de The Sandman Overture chegou às lojas norte-americanas em outubro de 2013. A ideia era comemorar os 25 anos da série original e Gaiman iria escrever sobre os eventos que aconteceram com Morpheus imediatamente antes dele ser capturado por Roderick Burgess no Sandman #1 de janeiro de 1989. Vou repetir, minhas expectativas não eram as melhores. Não que eu achasse impossível que Gaiman pudesse fazer uma boa história, mas tava tudo muito com jeito de ser um caça-níqueis. E era mesmo. Mas também era algo mais.
A sinopse de The Sandman Overture é aquela típica história de super-heróis: uma terrível ameaça pode aniquilar a existência do Universo e cabe ao nosso herói impedir, com direito a viagem no tempo e retcon. A partir daí, Gaiman repete de maneira muito positiva o que ele fez na série original: mostra a sua perspectiva de um quadro que já tínhamos visto antes e faz a coisa parecer completamente nova. A fórmula “herói salva o dia” é usada como veículo, como pano de fundo para Gaiman revisitar sua própria obra e tratar de temas que lhe são muito caros.
Aliás, em The Sandman Overture Gaiman retoma diversos conceitos e ideias de momentos chaves da série original. A resposta “Esperança” no duelo com o Demônio Choronzon na edição 4, a princesa Alianora do final de Um jogo de você, as origens dos portões de chifres e marfim na edição 2, o primeiro vórtice onírico de A Casa de Bonecas, o sonho de mil gatos da edição 18… Enfim, é um fanservice extraordinário. Você não precisa ser um especialista em Sandman pra curtir a história, mas ela ganha uma outra dimensão quando você vai se dando conta das referências.
Uma diferença importante entre The Sandman Overture e as histórias de Sandman é a questão da representação do mundo “real”. A série original apresentava muitas sequências e eventos que ocorriam em terras imaginárias (o Sonhar, o Inferno, Faerie), mas a presença do nosso mundo, o mundo “real” e “desperto”, era constante. Mesmo os reinos mágicos e realidades paralelas tinham uma dimensão humana, terrena. Em The Sandman Overture há uma breve citação a Londres de 1915, onde encontramos o Coríntio, e depois toda a história se passa num ponto longínquo e incerto do Universo ou em não-lugares simplesmente incompreensíveis. Enquanto a série original primava pela fantasia folclórica, mítica, em Overture o fantástico ganha dimensões cósmicas (coisa que Gaiman já tinha começado a ensaiar na edição especial Noites Sem Fim, publicada em 2003 [no Brasil, em 2003 pela Conrad e em 2014 pela Panini]). No capítulo 2, o personagem Glory (Resplendor, na versão brasileira), comenta que há cerca de quatro bilhões de células no cérebro humano e há cerca de quatro bilhões de galáxias no universo. Esse paralelo entre universo e cérebro humano ilustra que The Sandman Overture pode ser tanto interpretado como uma aventura cósmica quanto como um mergulho na mente. No caso, na mente do protagonista Sonho.
De fato, o personagem é desnudado. Passagens apenas mencionadas na série original são reveladas em detalhes. Talvez mais do que em qualquer outra história, Gaiman expõe as fragilidades e afetividades de Morpheus. Quando o protagonista recebe o seu irrecusável chamado para a “jornada do herói”, sua motivação não é salvar o Universo. Todas as coisas morrem e se chegou a hora do Universo morrer, tudo bem. “Eu só trabalho aqui, caras”. A real motivação que impele Sonho a entrar na jornada é a descoberta de que essa morte do Universo é culpa sua. Trata-se de algo que ele deveria ter feito, que era responsabilidade sua, e ele não fez. Responsabilidade e incapacidade de lidar com certas questões emocionais como rejeição ou términos sempre foram características cruciais do personagem Sonho. Ele sempre demonstrou muita imaturidade mal-escondida sob o verniz de seriedade e frieza. É só lembrar o término do relacionamento dele com a princesa Nada, que depois implicou A Estação das Brumas. Essa ideia de sofrer as consequências por uma atitude equivocada tomada por pura falta de experiência na lida com assuntos espinhosos repete-se mais uma vez em The Sandman Overture.
A única solução que Morpheus encontra para reparar seu erro é pedir ajuda para seu pai. Num primeiro momento, Gaiman faz um fanservice. Afinal, essa é uma questão que todo fanboy e fangirl de Sandman deve ter se perguntado uma vez na vida: se os Perpétuos (os Endless, os Sem-Fim) são irmãos, quem são os pais? Quer dizer, é uma pergunta que a gente não leva muito a sério porque pensa que no fim é tudo uma alegoria, um modo de contar as coisas e que provavelmente Destino, Morte, Sonho, Destruição, Desejo, Desespero e Delírio nunca tiveram “pais” do jeito que a gente imagina. E lá vai o Gaiman e nos apresenta o “papai” e a “mamãe” dos sete irmãos. Superado o primeiro momento, a gente começa a perceber que os pais não aparecem na história apenas pra surpreender e instigar os fãs. Daí entra outro tema muito importante para Gaiman: as relações familiares. Não só em Sandman, mas em outras obras (Mr. Punch, O Oceano no Fim do Caminho, etc) a questão das relações familiares está presente. Trata-se de explorar as tensões, as mágoas, as relações de amor e ódio entre pais, filhos e irmãos. O toque de Gaiman está justamente em apresentar seres extraordinários, entidades cósmicas transcendentais, e ao mesmo tempo torná-las humanas, frágeis. São diálogos leves, divertidos, despretensiosos e às vezes comoventes.
Assim, o Tempo, pai, vive sozinho e sente falta da mãe, a Noite. As conversas de Morpheus com seus pais mostram uma família que se desintegrou há muito tempo, mas que ainda é uma família. Um casal que nunca vai se reconciliar, mas que de certa forma está unido pra sempre. No capítulo 5, após uma conversa malsucedida com sua mãe, Sonho fala consigo mesmo: “O que eu esperava? Que eu iria sanar velhas mágoas? Reparar ofensas? Curar o rancor entre meus pais e com isso curar o Universo?”.
Vale destacar que no fim, Morpheus consegue reverter seu “erro” e salvar o Universo sem a ajuda de seus pais, valendo-se de seus próprios recursos e da surpreendente e inesperada ajuda de sua irmã Desejo. Nas histórias da série original, Sonho e Desejo sempre mostraram animosidades. Aqui, em pelo menos duas ocasiões, o próprio Sonho, muito a contragosto, acaba recebendo imprescindíveis auxílios de Desejo. Novamente, as relações complexas, agridoces, cheias de tensões. O modo de Desejo ajudar é ambíguo. Por exemplo, quando ela “presenteia” sonho com a jovem Alianora, para que ela o salve e o ajude. Morpheus apaixona-se por ela e com ela consegue superar as terríveis adversidades. E depois, por um tempo, eles vivem felizes. E depois o amor morre. “Ela desistiu de muito por nós”, pondera o Gato dos Sonhos, “nós fomos cruéis”.
Se olharmos bem, vamos perceber que além de contar uma odisseia cósmica cheia de referências à série original, The Sandman Overture é principalmente a história de um sujeito que precisa amadurecer e isso significa enfrentar perdas e consequências de suas escolhas. Aceitar que as coisas mudam e não permanecem. Administrar rancores, mágoas e culpa. Era a mesma ideia da série original, mas em Overture ela fica mais exposta, explícita.
Como uma história em quadrinhos não se faz só com os temas e as palavras do roteirista, vale também dar uma olhadinha no design de J.H. Williams III. Ele pensa sua narrativa para o formato impresso tradicional, dirigindo a leitura por layouts que se espalham pelas páginas duplas. Na maioria das vezes, ele consegue conduzir o olhar do leitor por trajetórias incomuns pelos painéis, valendo-se da disposição e proximidade dos balões. Um ótimo exemplo disso é o encontro com as Três Bruxas no capítulo 3. A conversa com aquelas que conhecem o futuro é feita num layout de painéis que compõe o desenho de uma mão e brinca com a ideia da quiromancia. As páginas que mostram o livro de Destino ganham uma tridimensionalidade fantástica. Os estilos de desenho que ora trazem psicodelia, ora passeiam entre Jack Kirby e Moebius, vão construindo diversas intertextualidades. As páginas acabam ficando pesadas, cheias de informação e detalhes e, de certa forma, lembram e extrapolam os layouts das primeiras edições, que traziam molduras, grades irregulares, mudanças de sentido de leitura (veja a edição 10 de Sandman, com arte de Mike Dringenberg). Na edição encadernada deluxe norte-americana, há uma seção de extras bem bacanas, que inclui uma entrevista com Williams III na qual ele explica detalhadamente as concepções de design para The Sandman Overture.
Essencialmente, é só mais uma história de super-herói que salva o universo. Era sim um projeto caça-níqueis, um projeto pensado pra ser consumido pelos fãs da série e pelos fãs do autor. Mas o carinho de Gaiman pelo personagem, o modo como ele se vale de ficção fantástica pra abordar temas tão corriqueiros como amadurecimento e relacionamentos e a honestidade de sua prosa dão uma dimensão extra a The Sandman Overture. É exatamente esse “algo a mais” que destacou a série original nos anos 1990. Como fã chato, não posso reclamar. É um trabalho de primeira.