[A Consciência de Zeni] Quadrinhos abstratos? – parte 2

Ainda na ressaquinha da Bienal de Quadrinhos de Curitiba, aproveito meus dias no interior do Paraná pra continuar a investigação abstrata sobre quadrinhos abstratos. O “parte 2” do título não é zoeira, não. Basta clicar nesta frase aqui e ver a parte 1 – que recomendo, por mais que eu faça aquela retomada sapeca abaixo.

Anteriormente, em Consciência de Zeni:

– o autor (no caso, eu) assumiu que não sabe onde vai chegar com a pergunta que fez e nem quanto de texto isso vai gerar;

– a pergunta é “Quadrinhos abstratos?”, que mostrou se desdobrar até chegar a “os quadrinhos ditos abstratos têm realmente abstração neles?”;

– uma noção de quadrinhos abstratos que se foca no aspecto visual: arte representativa versus arte não representativa (ou abstrata). Vamos daqui.

Figurativo quer a representação de aspectos concretos do mundo, usa linhas, pontos, texturas, cores, etc., mirando tirar da vivência e grudar na tela/folha/muro/etc. e tem certo tesão pela mimese; o abstrato não, os elementos formadores do desenho/pintura/escultura/etc. são eles próprios motivos das obras.

Acho essa definição bacana pra continuar a pensar, mas ela tem problemas: deixa o receptor de lado e se baseia em um par de opostos. Vem comigo, vamos curtir a definição um pouco.

Vamos pensar qual seria a perspectiva do leitor diante de duas telas, uma figurativa e outra abstrata.

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Edward Hopper, Morning Sun
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Sonia Delaunay-Terk, Rythme couleur nº 1444

Uns palpites: na tela de Hopper, o receptor tem um reconhecimento primeiro e inevitável, um impacto veloz, por mais estranho que a representação pareça; na pintura de Delauney-Terk há evocação de uma semelhança, um desejo de reconhecimento, mas não há pontos de apoio muito firmes na própria tela para isso.

Vale aqui desfazer um equívoco bastante comum: surrealismo e cubismo não são abstratos. Magritte, por exemplo, é um pintor que usa de técnicas claramente realistas.

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René Magritte, A Memória, 1948.

Nessa tela aí de cima os elementos visuais que compõem o quadro são claramente reconhecíveis e parte do mundo do observador da pintura; é o encontro inusitado, a justaposição entre eles que zoneiam a noção de mundo convencional, além de por vezes, o uso da perspectiva. Vamos ao cubismo:

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Pablo Picasso, Le Charnier, 1944-45

O grau de realismo é outro, o trato dado a linha e a cor também é outro em relação a Magritte, mas nada aqui anula a mimese. O que pode causar um estranhamento é a planificação da tridimensionalidade do objeto, o que sublinha a materialidade do quadro.

Bem a definição que eu disse que lá trás era insuficiente foi bastante útil e a gente chegou até aqui com ela.

Acho que está na hora do desapego e nos livrarmos da definição, pelo menos nos termos em que foi usada até aqui. Vamos falar mal dela? Vamos!

Primeiro, a definição figurativo versus abstrato se monta a partir de opostos, o que é bastante reducionista. Isso de um par positivo/negativo parece que chegou à essência da questão e que ela pode ser diminuída binariamente e não gosto disso. Outra coisa que não gosto é que tudo parte e volta para o autor, numa espécie de gênio romântico, desligando a importância da recepção e dos olhos de quem vê.

Compro e revendo a ideia de que autor e leitor estão em equilíbrio no jogo comunicativo e ambos são imprescindíveis pra existir mensagem.

Vamos exemplificar as limitações de um par de opostos: uma das escolas do abstracionismo é a da abstração geométrica. Ora, triângulos, círculos, pirâmides, esferas, etc., são formas reconhecíveis. Embora representem bastante bem a questão da linha e ponto por si mesmos, não dá pra cravar que aquelas formas ali na tela não estejam por aí, não façam parte do mundo.

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Wassily Kandinsky, Composição nº 8, 1923

Essas obras servem aos dois lados da definição.

Acho seguro falar em quadrinhos geométricos, que seriam abstratos por essa tradição das artes visuais. Tradição que tem pouco peso sobre as HQs, sendo muito mais determinante, por exemplo, as artes gráficas industriais (papo pra outra coluna).

Pensando ainda na pintura (ué, não era sobre QUADRINHOS abstratos?), mas por outro enfoque, quadros impressionistas representam lugares identificáveis, mas por vezes são lidos como abstratos devido ao seu baixo grau de representação documental.

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Claude Monet, O caminho da rosa, 1920-22

Usei esta citação no texto anterior da série, e podemos ver aqui de onde tirei a ideia acima:

“[…] pode acontecer de uma obra ser vista como abstrata não tanto porque não se pareça com nada, mas porque seu tema ou motivo é difícil de identificar” (Charles Harrison, “Abstração, figuração e representação”, p. 185 in Primitivismo, Cubismo, Abstração: Começo do século XX, Cosac Naïfy, 1998).

Me parece que os quadrinhos ditos abstratos o são muito mais por certa obscuridade na arte ou por um cubismo/surrealismo confundido com abstração. Há, sim, quadrinhos geométricos em que a etiqueta {abstrato} teria um gancho histórico.

Ainda tem muita ideia sobre essa relação entre história em quadrinhos e abstração, mas fechamos a bodega conceitual por aqui. Sim, sem muitas definições ou certezas mesmo. No próximo bloco dessa série, vamos pensar sobre o outro elemento de base das histórias em quadrinhos, o texto. Até lá.

 

Sugestão de leitura: Abscract Comics.

A imagem que ilustra esse texto foi retirada das Quadradinhas de Lucas Gehre, nº 473.

Publicado por lielson

Francisco Beltrão (1980) - Curitiba (2000) - São Paulo (2011) - Salvador (2017) - São Gonçalo (2018) - Santa Maria (2019).

4 comentários em “[A Consciência de Zeni] Quadrinhos abstratos? – parte 2

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