Há muitos e muitos tempos atrás, entrevistei o Daniel Lafayette para o (falecido) site da Editora Barba Negra (Ultralafa, 2011). Lafa tinha acabado de ser publicado pela editora, era seu primeiro livro. Sacudi a poeira da entrevista e convido vocês para revisitarem as tiras e as charges desse quadrinista escalafobético, que continua produzindo pra kct, analisando a moda e os costumes do Homo Interneticus e a subespécie Homo Interneticus Brasiliensis.
Maria Clara Carneiro: Vamos começar pelas referências: quais filmes e livros mais te marcaram?
Daniel Lafayette: Posso falar do que vi recentemente. O que vem agora é o que acabei de ler, com roteiro do Harvey Pekar, Os Beats (Saraiva, 2010, tradução de Érico Assis). E eu fiquei interessado em Burroughs, que nunca li, só vi aquele filme do David Cronemberg, Naked Lunch (no Brasil chamado de Mistérios & Paixões, 1991). Tanta coisa.
É verdade que aquilo que se está lendo em um momento vai fazer parte do teu trabalho. Tem também muita coisa antiga que fica, mas é difícil citar um, dois… eu lia muito Stephen King na adolescência, adorava. Ainda gosto.
Adoro cinema, queria trabalhar com isso antes de passar para os quadrinhos. Tenho uma coleção enorme de filmes, fico pensando em passar tudo pra um HD, tenho ainda uma enxurrada de filmes que baixei.
Uso muito as comédias como referência pra fazer humor, aquelas que são tidas por muitos como de mau gosto, não são engraçadas para muita gente. Por exemplo, gosto muito do Steve Martin de antigamente, O Panaca (The Jerk, 1979). …
Portanto, como referência para o meu trabalho, tudo. Em toda a sua vida, você busca o que vai te pautar.
O seu pai, sendo artista plástico, te ajudou na questão artística?
Só no sentido de que, na minha infância, tive acesso a uma educação bem lúdica. Meu pai fazia brinquedos com papéis, meu lego era com caixinhas de Yakult. A influência dele era mais nesse sentido, não apenas pelas artes plásticas. Era divertido pra ele. No carnaval, ele criava algumas fantasias e eu era a cobaia. Eu gostava, e acaba ganhando competições de fantasias. Tenho até hoje um troféu de fantasia original, pela fantasia “Pequena casa de brinquedos.” Lembro de uma de pirata com um barco em volta, de papelão.
E seus pais sempre te estimularam muito a desenhar, não é? Essa interdependência pais e filhos aparece também em tuas tiras, como naquela da tartaruga.
Aquilo aconteceu mesmo, tinha acabado de sair de casa, e um dia minha mãe me ligou quando eu tava no banheiro. E perguntou o que eu estava fazendo. Eu respondi o que era e ela disse: “Isso aí, filhão!”
Você disse uma vez que: “Uma tira, um cartum, deve ser entendido no ato, não tem que dar muito tempo pra entender”. Poderia falar um pouco mais sobre o que é a tira para você?
A tira, como toda linguagem, é feita de signos, símbolos. O leitor deve reconhecê-los para entender a tira bem. O entendimento é uma questão de geração, também: tem coisas nas minhas tiras que apenas aqueles da minha geração vão reconhecer com mais facilidade. Tem coisas que eu desenho e que os meus pais não entendem. Outra questão é o hábito: se o leitor tem o costume de ler quadrinhos, tem mais uma possibilidade de compreensão.
E é uma forma de arte, não vejo por que dizer o contrário, apesar de “arte” ser um rótulo que varia muito. Arte porque é um trabalho estético, com significado.
Você lia muito o Manual do Escoteiro da Disney?
Sim.
Você foi escoteiro?
Não (risos). Mas eu lia muito o Manual do Escoteiro Mirim, e gostava. Eu imitava, às vezes. Fazia um jornal, e distribuía. Colocava debaixo da porta dos vizinhos, apertava a campainha e saía correndo.
É o mesmo universo dessas fantasias que você continua colocando nos seus desenhos, não? Inclusive suas cores selvagens, “fauvistas”, têm um quê de universo infantil.
Tem sim. Mas é engraçado que, quando eu comecei a desenhar quadrinho, fazia tudo em preto e branco, antes de usar o Photoshop. Mas até depois de começar a usar, ainda fazia sem cor. Tudo mudou quando me chamaram para trabalhar no Jornal do Brasil: a página era colorida. Então passei a tirar as rasuras, deixar o traço mais redondo e a colorir.
Mas é como você disse, tem essa questão infantil. E acho importante essa impressão, gera uma incoerência voluntária entre o desenho infantil e o conteúdo adulto.
Esses jornaizinhos, também tinham quadrinhos? Quando você começou a mostrar teus quadrinhos para os outros?
Tinha quadrinhos, sim. Comecei a mostrar bem antes do JB, com o flog. Foi assim que conheci o Gabriel Góes, também por causa do fotolog dele. E só fui conhecer “gente” do lado de “fora da internet” mais tarde, em 2007, indo a lançamentos do Dahmer, do Adão…
Você acredita que o bar pós-lançamento é importante para o contato com os autores?
Acho importante! Quando houve o Rio Comicon, por exemplo, foi ótimo. A “materialização das pessoas” possibilita conhecer aquele cara que faz aquilo.
Apesar do isolamento ter grande importância para mim, acredito que é legal trocar, ver quem é que desenvolveu determinado trabalho.
Você trabalha sozinho mas também participa de um coletivo*. Como é essa experiência de trabalhar em grupo?
É um pouco difícil pra mim. Penso que, para eles, nem tanto.
Isso porque, na verdade, comecei a trabalhar com quadrinhos por dois motivos: primeiro, pela possibilidade de fazer tudo o que quisesse. Criar ali, do modo mais barato possível. Eu queria fazer cinema, mas é muito complicado, ter de lidar com várias pessoas diferentes.
O quadrinho torna possível fazer tudo sozinho. E como sempre gostei de livros com desenhos, só consigo ler livro que tiver ilustração… Não, estou brincando.
Mas não deixa de ser uma ferramenta poderosa. O Harvey Pekar escreveu algo assim, não há como imaginar o que vai sair.
E o outro motivo foi a solidão, de poder estar solitário pra trabalhar, não precisar estar com outras pessoas em volta, não ter chefe.
Assim que integrei a Beleléu, foi meio complicado. Eu não sabia como lidar bem. Eu queria conhecer outras pessoas, e, ao mesmo tempo, continuar sem interferências. Na Beleléu, acabei aprendendo a deixar a porta aberta à interferência. Tanto que, hoje em dia, a gente faz o blog com histórias seguindo uma mesma linha.
Não deixa de ser, ainda, um pouco difícil pra mim. Tanto que eles fizeram um livro e eu não consegui, eu não entrei no clima pra fazê-lo. Eu tenho problemas.
Você brinca, às vezes, com assuntos polêmicos, como a religião, denunciando certos conformismos, costumes…
Eu tenho um certo receio em relação à gente com muita certeza das coisas. Acho isso muito perigoso para a raça humana, e a religião, principalmente o cristianismo, trabalham a busca da verdade, das certezas. Não que eu evite quem tenha religião, não excluo ninguém, tanto que namorei uma menina religiosa.
Mas não gosto. Me dou melhor com a dúvida do que com a certeza.
Você pode ter um laço forte com a sua religião, mas não pode ser radical. Nesse sentido, EU sou um tanto radical.
O mundo é todo um desdobramento, tudo no mundo pode gerar desdobramentos. Assim, você não pode radicalizar. É como entrar naqueles fractais… acho que estou viajando, agora.
Outro tema recorrente nos teus quadrinhos são os absurdos cotidianos, como o “Incrível Homem Comum”, mostrando como a realidade é difícil, absurda.
A gente não explora os nossos limites, nossas capacidades, vontades. E aí ficamos presos a essas pequenas coisas que temos que fazer, mesmo que não necessárias. Transformamos tarefas fúteis em essenciais.
Há dez mil anos, o homem tinha que caçar o tigre, assar a carne, são obrigações diferentes. E hoje, cada nova invenção vira uma obrigação nova, iPad, celulares. Eu adoro a internet, mas você não pode ficar preso ao novo.
Você tem produzido muito ultimamente, e teu livro está bem grande.
É, e muita coisa ficou de fora. Eu produzi bastante… mês passado. Depois do carnaval não fiz mais nada, impressionante. Não consegui voltar a trabalhar, também voltei a estudar, comecei a caminhar.
E também porque não consegui ainda. Tive várias ideias, já, tive uma ideia bacana sobre ficção científica que vai se chamar “Tilt”. Estou tentando pensar mais que produzir, sair da neura de produzir um quadrinho por dia. Não estou empregado agora, como tenho tempo pra pensar, vou usar isso a meu favor, sem precisar fazer tudo em cima da hora.
Está querendo guardar o que está fazendo, em vez de postar diretamente no blog?
Não, porque eu gosto de um certo retorno, não vou deixar de publicar por isso.
Se você quer dividir alguma coisa com os outros, você tem que ter coragem pra se expor.
Alguém te perguntou em um debate sobre a inconstância dos teus personagens, você não continua muito tempo com eles. Por que essa transição rápida?
Eu quero sempre criar algo novo. Não que eu não pudesse ter um personagem fixo e continuar a criar coisas novas. Mas eu prefiro criar sempre o novo, e muito. Meu momento preferido é o do nascimento do personagem. Então, logo depois, já fico meio de saco cheio, meio saturado daquilo, quero criar outro.
Porém, há personagens que permanecem.
O Escoteiro Patinho voltou com força agora…
É, ele está bombando.
Mas a Tartaruga não aparece mais.
Eu matei a tartaruga.
Matou?
É que eu criei o Lobo Herman. Fiquei cheio da tartaruga deprimida.
Mas o lobo Herman também é um tanto deprimido…
O Herman é menos passivo, a tartaruga era mais devagar, mais ou menos como eu me via… Não que eu não seja ainda devagar. Só que prefiro me motivar a fazer um pouco mais, a acelerar, como um lobo.
Mas então, qual é o seu personagem que você gostou mais de fazer?
Eu.
- Lafa participava da Beleléu, até meados de 2012.