Pedimos a Alisson da Hora* para nos escrever sobre literatura e censura, e ele nos entregou esse belo texto.

Quando nós somos Sísifo
Camus se viu obrigado a suprimir na primeira edição de O mito de Sísifo o pequeno texto “A esperança e o absurdo na obra de Franz Kafka”, por conta de, numa França ocupada, cercado de nazistas e colaboracionistas, não era de “bom-tom” ficar discorrendo sobre um autor judeu. Substituiu por um texto sobre Dostoiévski.
Em se tratando de literatura e artes, a censura não é nova e obviamente não responde a critérios muito objetivos senão àqueles que correspondem ao gosto ou à conveniência de quem, muitas vezes, está no controle do imaginário. Assim, Platão já dizia que poetas eram mentirosos que corrompiam o mundo sensível e que deveriam se dirigir ao exílio a não ser que decidissem escrever com as regrinhas bonitinhas da República. Essa adorável ideia platônica serviu para que os católicos depois estabelecessem seu Index, muitas vezes fazendo fogueiras com a substância dos proibidos, e até bem antes dessa institucionalização os primeiros fanáticos cristãos já tinham arrastado Hipátia de Alexandria pelas ruas da cidade enquanto a famosa biblioteca ardia, fazendo com que parte do conhecimento da Antiguidade Clássica se perdesse e só retornasse mais tarde ao nascente mundo ocidental pelas piedosas mãos dos muçulmanos como Averróis e Avicena.
Mundo muçulmano, aliás, que hoje em dia emula os seus amiguinhos católicos (sim, o Index católico ainda existe!), e têm horror a qualquer livro que possa subverter sua ordem (depois ainda há quem se pergunte porque Paulo Coelho faz sucesso por lá).

Toda censura, por mais sofisticada que se torne, trará consigo a indelével marca da burrice. Em Amadeus, de Milos Forman, temos a cena na qual Mozart dribla a censura da Corte austríaca sobre o tema abordado em As bodas de Fígaro (acreditavam que a mera encenação provocaria uma luta entre as classes), se ajoelhando e dizendo que Fígaro estaria buscando algo embaixo da cama e não fomentando revoltas.
Lógico que acreditaram em Mozart.
Mas há os mais esquentadinhos, como os agentes do DOPS descritos por Stanislaw Ponte Preta num dos Febeapá, que invadindo o Teatro Municipal de São Paulo, (onde estava sendo encenado Electra) buscavam prender Sófocles sob a acusação de subversão.
Tais exemplos são bem característicos de como nosso fardo é pesado e absurdo como o de Sísifo. Quando achamos que superamos a estupidez – essa imperatriz de visão frequentemente turva -, seus filhos pululam de todos os lados bradando contra às agressões à moral, aos bons costumes, às criancinhas que não falam palavrão, botando nas nossas costas a pedra da reflexão e fazendo com que subamos a ladeira do absurdo, enquanto vamos pensando no que deu errado.
Não que tenha dado errado, nem é somente a “cadela do fascismo que está sempre no cio”, como gostava de dizer Brecht: são visões de mundo inconciliáveis sempre em conflito como a de um Platão que achava corrupção a poesia que não se enquadrasse nas leis da República, do mundo católico que acha que Harry Potter é realmente daninho para o aluno de catecismo que o lê (e se há quem se salve das birras católicas por não seguir a estrita ortodoxia que mesmo o Catolicismo Romano possui, os praticantes fervorosos conseguem ser tão reacionários quanto um neopentecostal que prega a conversão ou a destruição daqueles que não acreditam neles), do muçulmano que pede o pescoço de Salman Rushdie.
O tempo no qual essas reflexões sobre validade e necessidade, legitimidade e beleza, negatividade e certeza, enfim, tudo o que cerca a arte em qualquer nível corresponde quase sempre ao momento no qual nós, como um Sísifo constantemente reeditado, cremos que o obscurantismo está adormecido. E não está. Podemos carregar a pedra novamente lá para cima, enquanto explodimos de pensar no caminho; podemos pegar a pedra e nos recusarmos a permanecer no absurdo da situação e dá-la aos estúpidos para carregarem um fardo ao qual não estão acostumados: pensar.
E eis aí o mais absurdo de tudo isso, porque novamente a pedra recai no nosso colo e nos vemos forçados a pensar como fazer os outros pensarem enquanto eles imaginam que podem decidir sobre o que pode ser lido, sobre o que pode ser visto.
O problema é quando ainda imaginamos sobre o quanto eles podem decidir e vamos subindo novamente a ladeira das reflexões com isso em nossas mentes.
O perigo é entre nossa imaginação e uma possível realidade na qual eles vão, efetivamente, decidir.
Então é hora de esmagá-los com a pedra.
- Alisson da Hora é poeta, crítico literário, Doutor em Literatura pela UFPE, e professor na mesma universidade.