[Parlatório] Dominique Goblet

 

“retrato de um pai ideal”

A des.gráfica desse ano vem com dois convidados das gringas interessantíssimos, e a gente tem muita honra de ter sido convidado para não apenas mediar essas conversas, assim como poder entrevistar, em primeira mão, esses caros ilustres.

Um deles é o requintado crítico de quadrinhos português Pedro Moura. O outro convidado é a Dominique Goblet, artista plástica belga, ilustradora e quadrinista, das mais importantes autoras que mexeram com o gênero autobiográfico. Emprestei Faire semblant c’est mentir há anos a alguém que amaldiçoo até a próxima geração (mentira, sou bruxa pelo bem. Mas me devolva, por favor).

Pequeno panorama

Dominique Goblet publicou seu primeiro livro, Portraits crachés, em 1997, recolhendo histórias publicadas na revista Frigo, de certa vanguarda, que surgia ali em Bruxelas. Fréon, sua primeira editora, vinha desse mesmo grupo, uma tentativa de fazer quadrinhos que não tivessem nada a ver com a escola franco-belga onipresente.

Em Souvenir d’une journée parfaite (2001), publicado pela Frémok, reunião da Fréon com a marselhesa Amok, ela revisita a cidade em que cresceu, começando pelo cemitério onde seu pai acaba de ser enterrado. A cidade é investigada pelas camadas de narrativas que ali circularam e circulam.

Faire semblant c’est mentir (L’Association, 2007) foi uma autobiografia meditada ao longo de dez anos, em que a autora só se permitia escrever sobre sua família quando estivesse distante dela, como explica mais abaixo. E seu livro seguinte retoma a ideia de família, mas com outros olhos: ela convidou Nikita, sua filha, então com 7 anos, a experimentar um exercício pelos próximos 10 anos. Toda semana, as duas deveriam posar e desenhar uma à outra. O processo rendeu Chronographie (L’Association, 2010).

Sempre um trabalho de pesquisa da narrativa pela forma, buscando o poético, investigando a si mesma. Com o artista alemão Kai Pfeiffer, realizaram um livro colaborativo começando pela imagem, para depois compor a narrativa. Plus si entente (Actes Sud e Frémok, 2014) descreve encontros amorosos de uma cinquentona com ajuda da internet. E esse livro, feito via internet, deixa desfilar as fantasias desses personagens que se descolam desses sujeitos-autores delirantes.

***

Entrevista em colaboração com Aline Zouvi, Lielson Zeni e Thales Lira

 Desde o início de sua carreira, você associa as artes plásticas às histórias em quadrinhos. Gostaríamos de saber quais eram suas referências em quadrinhos antes das Belas Artes, ou se tudo veio sempre junto em seu vocabulário visual.

Dominique: Não venho diretamente das histórias em quadrinhos e meu interesse por essa mídia era limitado. Comecei a me interessar por ela quando fiz meus estudos de nível superior em ilustração. Mas, sobretudo, porque havia um grupo de estudantes (uma boa parte deles futuros FREMOK) que tinham se juntado e queriam virar do avesso todos os códigos e os ditos da norma mainstream.

Eu queria fazer parte dessa dinâmica, me sentia também fora do meu lugar no mundo muito infantil da ilustração, tal como essa mídia nos era ensinada.

Eu já tinha tendência a querer me opor aos códigos e, sobretudo, aos temas ingênuos demais para o meu gosto.

Eram os anos 1990, a escola franco-belga tinha o monopólio, a linha clara, o humor de quinta série, as aventuras…

Fui apresentada ao grupo, a gente começou a trabalhar juntos e nossas influências vinham mais da literatura, da pintura… do que das histórias em quadrinhos.

Você publicou sobretudo pelos renovadores da cena das histórias em quadrinhos dos anos 1990, Fréon, Frémok, L’Association, todos saídos de trabalho de colaboração entre autores. Como você vê esse ambiente colaborativo?

Não era colaborativo em termos de trabalho, cada um trabalhava com seus próprios projetos. Mas o que fundamentou nosso mundo foi o desejo de criar um coletivo que pudesse resistir à demanda muito cifrada dos editores mainstream.

Tinha também um espírito bem combativo… e festivo.

O que às vezes mexia com as coisas e, ao mesmo tempo, fez ampliar as fronteiras da HQ associando sistematicamente a outros universos (exposições/instalações, dança, gravura, animação…).

Mas também, buscar contatar e colaborar com outras estruturas independentes experimentais que floresciam um pouco em cada canto pela Europa, mas que não se conheciam. Isso foi possível com a criação de um festival, que se chamava “AUTARCIC COMIX”.

Comecei a trabalhar com L’Association porque tensões tinham emergido no grupo belga Fréon (o antigo nome de Frémok), decidi, então, me abrir e não me concentrar mais em um grupo. Além disso, L’Asso[tiation] naquela época tinha começado a publicar narrativas autobiográficas, abrindo o gênero na Europa, o que era um bom encaixe pra mim, pois já tinha na cabeça essa narrativa pessoal: Faire semblante, c’est mentir [2007]… e me parecia que esse trabalho era mais adequado para essa editora (que, nessa época, era mais bem definido que Frémok).

Página de Plus Si Entente

Como foi produzir um livro em colaboração (Plus si entente, com Kai Pfeiffer, Frémok e Actes Sud, 2014)?

O livro com Kai Pfeiffer partiu de um jogo. Nos encontramos em um festival, a gente se apaixonou um pelo trabalho do outro.

Encontramos uma fórmula que a gente podia explorar à distância.

O princípio era simples.

Escolhemos uma temática: encontros amorosos em sites da internet.

As páginas foram divididas em quatro e, cada vez que um de nós acabava uma página, a enviava pela internet, o outro recebia a página, reagia às imagens recebidas… ou não.

Assim que fizemos 100 páginas, a ideia era de recortar as páginas, misturar as imagens, ver se era possível criar uma narração baseada nesse banco de imagens.

Nós queríamos nos divertir em inverter o processo geralmente utilizado em história em quadrinhos, colocando a escrita rio cima e o desenho rio abaixo.

E como era trocar retratos com sua filha? Para Xavier Guilbert [Du9.org], você falou da disciplina e o jogo depreendidos dessa experiência, de uma disciplina não escolar. Você acha que vocês duas aprenderam uma consciência artística desse exercício semanal? Você nota efeitos dessa experiência em seu trabalho de artista?

Esse é, para mim, uma outra forma de narrativa, de encontro. Nós tentamos falar de nosso laço e de nossas dificuldades respectivas.

É uma narrativa, a de uma mãe e de uma filha, das tensões, das alegrias, dos cansaços.

Páginas de Chronographie

Esse livro é também, para mim, uma resposta à minha autobiografia… Eu tinha me tornado mãe também, de uma filha, e temia um pouco não estar à altura desse laço, eu não compreendia a noção de instinto maternal e me questionava muito sobre o tema da educação e da mãe que eu ia ser para Nikita.

Esse projeto é a tentativa de resposta para essa questão.

Você fala também a Guilbert, a dado momento, da importância da pose. Há algo de se dar uma para a outra que reafirma, reforça o laço mãe-filha sem uma imposição da fala. Nos parece bastante importante, um sacrifício da palavra, para se deixar cativar [no sentido de estar cativo] pelo desenho. Você acredita que foi importante para desenvolver uma relação justa entre vocês duas? Nós também estamos curiosos para saber se Nikita continua a desenhar.

Nikita não desenha mais, mas ela desenvolveu um sentido da criatividade: ela estudou direito… Mas ela se posicionou de uma forma bem particular contra a ordem estabelecida em se especializando nos direitos dos animais.

Páginas de Chronographie

No site da Frémok, citam uma referência importante a Proust em seu Souvenir d’une journée parfaite. Você se reporta a outros autores autobiográficos em seu trabalho?

Acho que não fui a fonte dessa citação.

Tudo o que nos nutre é reinjetado em nosso trabalho, a arte dos outros… Mas também a vida, o amor, o cotidiano, o quase nada.

Neaud e Menu autopsiaram a autobiografia em uma entrevista de 2007, dizendo, já naquela época, que esse gênero tinha se tornado superpovoado de trabalhos que não davam nenhum risco a seus autores. Faire semblant c’est mentir, publicado no mesmo ano, representa, por outro lado, o que eles afirmavam como sendo a melhor realização do gênero, em que a tomada de risco pela vida se dava também pela forma, e essa nos parece ser a sua forma de trabalhar. Você poderia nos falar de como concebeu esse livro?

Poderia falar disso por horas… Como responder a essa questão…..

Tudo o que posso dizer, é que esse livro era uma necessidade. Eu tinha que fazê-lo.

Eu precisava deixar esse passado distante e era possível fazê-lo pela criação.

Pode-se dizer que a elaboração e a forma dessa obra se deve a vários fatores…..

O primeiro é um desconhecimento da história em quadrinhos…. mas assumido.

Não queria olhar demais o que se fazia, não queria integrar os códigos e noções inconscientemente.

A forma resulta, logo, de uma falta de jeito que eu tinha prazer em confrontar.

Página de Faire semblant c’est mentir

Um outro fator atuante, também, era o tempo: eu devia deixar o projeto hibernando quando estivesse em contato com minha família.

Mas como essa família era muito instável, longos períodos solitários me davam o espaço necessário para avançar sem o peso do julgamento.

Não é fácil implicar as pessoas que nos rodeiam.

Dessa forma, as idas e vindas desse projeto me levaram várias vezes a reconsiderar a narração e mudar a ordem da história.

Foi assim que, finalmente, introduzi, também, o tempo adulto na história, para torná-la menos pesada, menos monolítica.

Para terminar, também tentei compreender em profundidade o que se podia fazer com “autobiografia” em história em quadrinhos, me dando conta de que a autobiografia não é uma questão de “realidade”….. Mas sim de “verdade”.

Você concorda com a afirmação deles de que há uma exploração do gênero de uma maneira artificial demais?

Não sei, acho que todo gênero que fica demais na moda vira um círculo vicioso e vira a caricatura de si mesmo.

Mas acho uma pena que a autobiografia seja tão difamada, acho que tudo é possível e que a autobiografia, ou a biografia, ou o documentário realista, não é pior que a ficção.

A ficção pode ser também tão limitada e tediosa….. e é verdade, não é porque a gente fala de nossa vidinha que a gente vai ser interessante ou tocante… Mesmo se o assunto é terrível. Um estupro mal contato, mal transmitido, fica uma narrativa sem relevo……

A pergunta de sempre, você conhece autores brasileiros?

Tenho vergonha… Mas não, confesso que não conheço bem a história em quadrinhos brasileira, estou contando para corrigir essa falha e poder fazer propaganda da criação brasileira na Bélgica quando voltar.

Você publicou recentemente no Facebook algumas páginas de seu próximo livro. Do que pudemos explorar, vimos páginas silenciosas, com uma paginação mais regular, um pouco diferente de seus trabalhos precedentes. Você poderia falar um pouquinho dele?

É uma colaboração com um artista da Hesse, centro de arte para pessoas portadoras de deficiência mental: Dominique Théate.

Essa alegre colaboração entre dois Dominique vai ter, naturalmente, o título de “O amor dominical”.

É uma narrativa sobre o lutador americano Hulk Hogan…. e misturando trechos do diário escrito pelo meu colaborador artístico.

Os desenhos que vocês devem ter percebido saíram da seção Diário, que eu ilustro com paisagens, tiradas do lugar em que esse homem mora.

goblet theate.jpg

L’Amour Dominical, no prelo

SERVIÇO:

A Des.Gráfica acontece no MIS (Museu da Imagem e do Som) de São Paulo, nos dias 4 e 5 (sábado e domingo) de novembro, das 13h às 20h. A palestra de Dominque Goblet mediada por Maria Clara Carneiro é no dia 4 e começa 18h. Não há cobrança de ingressos.

Mais informações:

Como chegar no MIS-SP

Des.Gráfica 2017

 

Publicado por mckamiquase

Maria Clara Ramos Carneiro on ResearchGate https://orcid.org/0000-0003-2332-1109

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